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Poesia em Casa – Uma tradução de Leonard Cohen

por Pedro Gonzaga

Em suas memórias, o escritor Tobias Wolff relata uma visita de Robert Frost à sua escola, num tempo em que o verso livre e branco já estavam estabelecidos. Seguidor de formas estritas, o poeta foi perguntado por um dos alunos por que sua poesia continuava presa a antigos valores. Em resposta, Frost afirmava que as dores de uma perda não doíam mais ou menos por causa da metrificação, como a dizer que cada poeta deve ter a liberdade de buscar os limites de sua arte. A mim, confesso, a poesia rimada, muito mais do que a meramente metrificada, perturba-me por sua arbitrariedade. Com o ouvido treinado pela poesia moderna, falada e não declamada, as inversões necessárias para produzir identidade sonora, o próprio comprometimento da escolha léxica, fazem-me perguntar se a expressão verbal não saiu prejudicada por soluções constrangedoras, que encontramos mesmo em grandes poetas. Então me lembro do Frost, e evito falsas polarizações.

O compositor e poeta canadense Leonard Cohen.

Problema, no entanto, surge quando se trata de traduzir um poema com recursos sonoros. Tendo a optar pela versão em versos livres e brancos sempre, quase uma versão prosaica, por vezes, para oferecer aos leitores uma visão mais nítida do conteúdo, aceitando as perdas sonoras.

Contudo, há muito queria traduzir a parte recitativa que abre a canção “A thousand kisses deep”, do Leonard Cohen, sem abrir mão do que aqui me parece central que é a musicalidade. Nesse esforço, muitas vezes é preciso agir com nova arbitrariedade, mais uma vez optando por um som adequado em detrimento da palavra mais fiel ao original.

O desafio maior aqui foi transpor a rima comum ao inglês, feita basicamente por som e não por identidade de letras, como acontece no português, sem perder tanto efeito. Optei, assim, por um tipo de rima também comum ao nosso idioma, especialmente na poesia popular, mas menos usada e reconhecida pelos leitores, a rima toante, na qual se combinam os sons das últimas sílabas tônicas dos versos. Assim, por exemplo, em vez da consonância de letras, como em “coração” e “nação”, aproxima-se “casa” e “mesada”. Tal movimento, permite trabalhar com uma margem maior de opções. Normalmente, eu traduziria “A thousand kisses deep”, título e bordão do poema, por “A mil beijos de profundidade”, mas para usar um som mais próximo do inglês, escolhi “À profundidade de mil beijos”.

A seguir está o resultado. Qualquer mérito, deve-se a beleza dos versos de Cohen, que oscilam entre o estilo alto e rebaixado, com profunda maestria. Optei pelo uso da segunda pessoa do singular para subir um pouco o tom, sem forçar algum arcaísmo ou inversões sintáticas esdrúxulas. Há no poema, ainda, um eco de cummings, perceptível no lírio que se abre, como tantas flores em seus versos.

À profundidade de mil beijos

Tu me chegaste esta manhã

Tangendo a carne de que sou feito

É preciso ser homem para saber

Quão bom e doce é, quão perfeito

Meu reflexo, meu mais acabado nexo

Em sonhos é que te conheço 

E quem se não tu me levarias

À profundidade de mil beijos

Eu te amei quando tu te abriste

Feito um lírio ao sol inteiro

Sou só mais um homem polar

Sob a nevasca e a chuva reteso

Que te amou de um amor gelado

Com um físico já não sem defeitos

Com tudo que é, com tudo que foi

À profundidade de mil beijos

Eu sei que me tiveste de mentir

Que me traíste por teus meios

Para posar tão alta e excitante 

atrás de véus tão traiçoeiros

Nossa perfeita aristocrata pornô

Elegante e barata a um só tempo

Estou velho, mas ainda estou no jogo

À profundidade de mil beijos

E eu ainda sigo bebericando o vinho

Ainda danço os passos lentos

A banda toca Auld Lang Syne

O coração não se renderá tão cedo

Eu corri com Diz e Danté

Nunca tive seus torneios

Mas vez ou outra me deixam tocar

À profundidade de mil beijos

O outono deslizou por tua pele

Alguma coisa captou o meu olhar

Uma luz que não precisa viver

E que não tem por que acabar

Um enigma no livro do amor

Obscuro e obsoleto

Até ser aqui testemunhado em tempo e sangue

À profundidade de mil beijos

Sou bom no amor, sou bom no ódio

É no meio que me refreio

Procuro melhorar, mas é muito tarde

Tem sido tarde demais há muito tempo

Mas tu pareces ótima, ótima de fato

Da Boogie Street o maior prêmio

Alguém devia ter morrido por ti

À profundidade de mil beijos

Eu te amei quando tu te abriste

Feito um lírio ao sol inteiro

Sou só mais um homem polar

Sob a nevasca e a chuva reteso

Mas não precisas me ouvir agora

E toda a palavra que eu deito

Depõe contra mim de alguma forma

À profundidade de mil beijos

Pedro Gonzaga

Pedro Gonzaga é poeta, tradutor, músico e professor. Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é autor de A Última Temporada, Falso Começo e O Livro das Coisas Verdadeiras (Arquipélago Editorial), sua estreia na crônica. Seu livro mais recente é Em outros tantos quartos da Terra.