LiteraturaReflexão

A tradução como mapa do mundo e como reconhecimento do outro

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Pensar a língua: a tradução como mapa do mundo e como reconhecimento do outro[1]

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por Márcio Scheel

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Nicole Oresme oferece sua tradução de Aristóteles ao Rei Charles V da França (Reprodução: Musée Condé)

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Das atividades humanas ligadas à linguagem e ao pensamento, a tradução é uma das mais importantes, essenciais e sempre desafiadoras. Traduzir, não raro, é compreendido, de forma elementar, como a capacidade e o domínio linguístico de fazer passar, de uma língua a outra, informações, ideias, conhecimentos, obras, visões de mundo etc. que, codificadas e expressas numa determinada língua materna, ganham amplitude e força significativa no interior das línguas e culturas de chegada, culturas entendidas, sobretudo, como espaços de circulação daqueles bens simbólicos imateriais, que são socialmente localizados, pois dizem respeito às singularidades intrínsecas às sociedades tomadas particularmente, mas que também são humanamente universais, já que configuram conflitos, tensões e demandas espirituais, ontológicas, típicas do drama existencial que compreende a vida do homem e seu lugar no mundo. A tradução, assim entendida, contribui para a ampliação do escopo de saberes humanos numa cultura específica, afetando, por meio das ideias que torna acessíveis, o modo como essa mesma cultura passa a perceber-se melhor em função das iluminações, desvelamentos e contradições que o olhar do outro, franqueado pela tradução, lhe confere. Sabemos mais de nós mesmos quando podemos confrontar nossos saberes com as ideias, informações, descrições, imagens que o outro nos fornece sobre eles e sobre nós mesmos. O conhecimento de si implica e envolve, em larga medida, a alteridade, que não pode ser jamais evitada ou elidida se quisermos escapar ao autoengano de um entendimento de quem somos estritamente baseados nos juízos e nas representações que tendemos a criar sobre nós. Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, diz, em um de seus poemas, que “a realidade/ sempre é mais ou menos/ do que nós queremos/ só nós somos sempre/ iguais a nós próprios”[2] — mas essa igualdade, claro, solicita o encontro com o outro, o confronto com ele, o aprendizado de ver-se pelos olhos generosos ou críticos do outro.

Traduzir, então, é tornar possível que o conhecimento do outro, no interior de uma cultura, afete os modos como essa cultura se compreende, se vê e afirma suas ideias, valores, aspirações, projetos, formas de ordenamento social e institucional, visões de mundo, crenças e circunstâncias ontológicas, criando e modificando desde o espírito do tempo às certezas, tabus e formas de compreensão mais ou menos tradicionais e estabelecidas. O que, em geral, se esquece é que traduzir é um gesto em muito anterior e, talvez, mais fundamental do que a tarefa, como diria Walter Benjamin,[3] de encontrar numa outra língua a expressão mais vívida das ideias que foram concebidas em função da natureza e da estrutura muito particular de uma determinada, com as visões de mundo, as idiossincrasias, os valores e os modos de expressão que ela encerra. Traduzir é, também, uma forma de encontrar, na linguagem, modos de dizer-se, de dar-se a ouvir, de comunicar aqueles pensamentos, ideias, afetos, imagens tão próprias ao modo como vivemos, sentimos, percebemos e interpretamos a nós mesmos e ao mundo. Traduzir é olhar para si mesmo com um primeiro olhar de compreensão, um olhar que deseja não só saber, mas também desvelar ao outro o que nos move e provoca, o que somos e resta oculto sob as aparências, os lugares-comuns, os clichês, as formas imediatas e algo elementares a partir dos quais nos mostramos ao mundo, nos evidenciamos. Sob muitos aspectos, é disso que Ferreira Gullar trata em seu poema “Traduzir-se”,[4] ao jogar, irônica e reflexivamente, com a ideia platônica da divisão das almas, que também é a divisão dos mundos, bem como com a ideia moderna, predominante na compreensão do próprio fenômeno literário, segundo a qual a própria linguagem literária é o resultado exclusivo de uma operação que envolve encontrar, no plano da forma, da expressão, um modo de articular o que sentimos, ansiamos, queremos e esperamos, a massa informe de nossos afetos, com a explicação lógica, racional, organizada desse universo interior de imagens, sensações e afetos.

É assim que o poeta anuncia, já na primeira estrofe, essa divisão inevitável que marca o nosso caráter mais profundo, pois mesmo que o eu-lírico fale em primeira pessoa, ele está certo de que nos reconhecemos todos nessa experiência de cisão: “Uma parte de mim/ é todo mundo:/ outra parte é ninguém:/ fundo sem fundo.” De um lado, então, “todo mundo”, o gênero humano, a somatória de todos os homens e o que partilhamos em termos de uma realidade existencial comum, mas, de outro lado, “ninguém”, no sentido de uma existência singular, cuja busca e compreensão de si mesma e dessa mesma singularidade envolve o “fundo sem fundo” de uma multiplicidade de anseios e conflitos singulares que nos isolam ou nos distanciam, por que não dizer, nos cindem?, do gênero humano com o qual partilhamos algo de nossa condição ontológica. E essa condição, que parece genérica num primeiro momento, vai se particularizando ainda mais ao longo do poema, quando, já na segunda estrofe, o dilema passa a se situar também no domínio da vida concreta, material, ou seja, das vivências do homem urbano moderno, que entrevemos no contraste entre a imagem da multidão, explorada desde Baudelaire como signo essencial da urbanidade moderna, da vida pública, civil, em conflito com a vivência individual, a percepção mais desalentadora de si: “Uma parte de mim/ é multidão:/ outra parte estranheza/ e solidão.” Aqui, então, temos o conflito entre a vida pública, cujo cenário urbano e, consequentemente, social, nos força a uma convivência massificada, a nos diluirmos indistintamente quase na massa de outros cidadãos, e o entendimento de que, mesmo em meio à multidão, ao mundo concreto e material que nos cerca, ao convívio que a civilidade exige de nós, nosso íntimo é marcado pelo estranhamento diante de quem somos, do que sentimos, do que carece de forma, expressão, e que se assinala a partir da imagem da solidão, isto é, esse dado de nossa condição existencial que, no fundo, não conhece linguagem ou explicação. E se se explica, deixa imediatamente de ser uma sensação.

Por isso mesmo, o poema sugere que essa cisão se torna tão mais acentuada quanto mais compreendemos os impasses entre o que nos afeta, o que sentimos, a natureza dissoluta dos sentimentos e das sensações, dos desejos e da vontade, o fato de que não dispomos de um modo inequívoco de dizê-los, e a necessidade de comunicação, de expressão, de dar à linguagem um sentido compreensível para a multiplicidade de sentimentos e sensações que nos constituem intimamente: “Uma parte de mim/ pesa, pondera:/ outra parte/ delira.”. De uma perspectiva mais elementar, todos seríamos constituídos dessa dupla dimensão: racional e irracional, razoável e instintiva, objetiva e sentimental, dada à ponderação, ao pensamento, e delirante, fantasiosa, inconformadamente sonhadora, idealista. De um ponto de vista mais profundo, também, vemos nessa estrofe a própria imagem do poeta, do trabalho poético: dar à dimensão delirante do espírito, isto é, a dimensão dos afetos, das paixões, da fantasia e da idealidade onde se formam as primeiras imagens do pensamento, os primeiros dados da percepção, uma constituição formal, expressiva, reconhecível e partilhável, pela linguagem, como, no caso desse poema, cuja composição regular, o ritmo demarcado pelas sete estrofes de quatro versos, oscilando entre o tetrassílabo e a redondilha maior, impõe ao conflito que esse sentimento de cisão e ruptura, de divisão entre interioridade e mundo causa, uma natureza cadente, musical, quase contrastivamente agradável aos sentidos, pelo ritmo ligeiro dos versos, se considerarmos a dimensão angustiante que o poema provoca ao nos levar a compreender-nos inevitavelmente divididos em duas metades que parecem absolutamente inconciliáveis. O trabalho do poeta, não muito diferente do trabalho de qualquer pessoa lançada no mundo, é o de traduzir, ou ao menos tentar, o magma dessa vida interior numa expressão a um só tempo sensível e racionalmente elaborada, comunicável.

Em meio à vida cotidiana, diante da rotina que dá segurança aos gestos e demandas diários, mas que retira da vida o risco, a imprevisibilidade, o prazer algo temerário de arriscar-se no mundo, essa divisão se acentua ainda mais, assinalados que estamos pelo hábito, de um lado, e pelo espanto, a surpresa, o maravilhamento que, ora ou outra, toma a cotidianidade de assalto, de outro, e nos desloca das certezas elementares em função das quais inventamos a ilusão da ordem que damos à vida: “Uma parte de mim/ almoça e janta:/ outra parte/ se espanta./ Uma parte de mim/ é permanente:/ outra parte/ se sabe de repente.” Somos, desse modo, esse jogo que se disputa, da alma à consciência, entre renúncia e vontade, resignação e espanto, duração e efemeridade, certeza e epifania (se sabe de repente). Aquilo que sentimos, que nos move rumo a uma inconformidade permanente, que faz com que nunca nos encontremos de fato satisfeitos com as coisas das quais dispomos ou com a vida a que nos demos, não tem forma no espaço da pura interioridade, dada a condição dispersiva, irresoluta das paixões. Logo, “Uma parte de mim/ é só vertigem”, ou seja, essa instabilidade do ser, essa vacilação do espírito que a espiral das sensações e dos afetos provocam, mas, “outra parte,/ linguagem”, a necessidade humana de dizer e, nesse processo, significar até mesmo aquilo que não entendemos de todo. Assim, resta ao poeta, como a nós mesmos, a dúvida, algo retórica até: “Traduzir uma parte/ na outra parte/ — que é uma questão/ de vida ou morte —/ será arte?”. Nesse instante, os sons vocálicos abertos, aliterados e ressoando uns nos outros — parte, parte, morte, arte — encarnam, significativamente, o conflito nada metafórico, a disputa de vida ou morte, entre o turbilhão passional dos afetos e a necessidade dramaticamente humana de racionalizar, compreender e dominar a vida, de estar de posse e no controle até mesmo do que escapa ao próprio entendimento.

A partícula “se”, no título do poema, anuncia, desde o início, esse duplo movimento que caracteriza todas as estrofes e que forja a moldura da imagem da cisão que dá o tom ao poema: o ser dividido entre desejo e conformidade, delírio e razão, dúvida e certeza, aspiração e renúncia, obviedade e espanto, banalidade e enlevo, confusão e ordem, o ser dividido entre a algaravia interior dos afetos e a linguagem que lhes dá concretude e significado. Traduzir-se, desse modo, é pensar-se, contemplar demoradamente o horizonte das paixões mais desordenadas que jazem subterraneamente em nós e que formam a dimensão verdadeiramente humana de nosso caráter, o horizonte das paixões que, em estado puro, não têm sentido, não têm explicação, e que só podem se dar ao entendimento quando submetidas ao trabalho da linguagem, mas, de modo paradoxal, é nesse justo momento, quando vazadas pela linguagem, quando racionalmente ordenadas numa língua e numa sintaxe, quando significadas, que elas perdem a intensidade candente que nos fascina e amedronta ao mesmo tempo. Traduzir é nomear, trazer à linguagem, conformar afetos e ideias à expressão que pareça ou soe mais justa, daí que um poema traduz sentimentos em ideias, afetos em imagens reconhecíveis, um romance, um conto, uma pintura, uma harmonia, a arte, de modo geral, funda-se sobre a necessidade humana de traduzir, pela linguagem, aquilo que, de outro modo, restaria desconhecido em nós. Todo nosso esforço comunicativo, todo nosso desejo por compreensão é, por si e em si mesmo, um gesto tradutório. E a tarefa do tradutor, desde que Walter Benjamin a formulou em seu ensaio homônimo, não é a de simplesmente comunicar, no sentido de fazer-se compreender objetivamente um conteúdo, aquilo que se formulou numa outra língua e numa outra linguagem, antes, a tarefa do tradutor é restituir, na tradução, aquela dimensão essencial da obra ou das ideias, que se forma a partir de uma determinada língua e de uma determinada linguagem, em função de determinados afetos e que a torna, por isso mesmo, singular. Traduzir-se e traduzir, então, concorrem na figura do tradutor. E não há tradução possível sem que se pese e pense a própria língua.

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Ferreira Gullar

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Pensar a língua

Em 1964, o importante jornalista alemão Günter Gaus entrevistou, para um canal de TV da Alemanha Ocidental, Hannah Arendt. Na entrevista, ela conta que deixou o país clandestinamente, depois da ascensão de Hitler ao poder e de ser presa, indo viver primeiro na França e, mais tarde, nos Estados Unidos, onde foi professora de teoria política. Conhecida por sua extrema lucidez reflexiva e pelo rigor crítico de seu pensamento, Hannah Arendt promove, a meu ver, uma das mais belas, contundentes e necessárias reflexões acerca de nossa relação com a língua e de como tudo aquilo que somos, sentimos, desejamos e pensamos é o resultado dessa relação fundamental. Isso porque, num dado momento da entrevista, Gaus pergunta se ela “sente falta da Europa pré-Hitler”,[5] se ela não pretende mais voltar, e conclui: “Quando você vem à Europa, qual a sua impressão: o que resta e o que está irremediavelmente perdido?”,[6] ao que ela prontamente responde: “A Europa do período pré-Hitler? Não tenho saudades, lhe garanto. O que resta? Resta a língua”. A resposta, ao mesmo tempo incisiva e poética, desvela a imagem de uma mulher e uma pensadora livre e autônoma, uma intelectual pública, que sempre interveio no espírito de seu tempo a partir de suas ideias e ações, uma filósofa política que pensou a política como o exercício de uma permanente responsabilidade pelo mundo, da qual não podemos abrir mão ao risco sempre enorme de colocarmos a perder o próprio mundo, a única coisa de que, de fato e livremente, dispomos, pois que nem a nossa própria vida, em sua dimensão civil, nos pertence integralmente e sempre pode ser disponibilizada, tomada, sequestrada e, no limite, exterminada pelo outro.

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https://www.youtube.com/watch?v=RfoaHBTAfzU

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A resposta revela, também, a cidadã engajada e comprometida com os problemas de seu antigo país e do mundo, expatriada, mas que, em seu exílio, não sente falta da pátria, pois sabe que aquilo que a torna mulher, alemã e filósofa não são as fronteiras geográficas de um país, nem os títulos de cidadania ou sua certidão de origem, mas sim a língua, fundamento de sua cultura e condição essencial de seu pensamento. A ideia, parece óbvio dizer, é que podem nos tirar tudo — pátria, lar, segurança e até mesmo a liberdade —, mas não podem sequestrar a língua, o que ela nos deu em termos de um patrimônio cultural inestimável, o que ela fez de nós, nossa identidade mais profunda e decisiva. É assim que, indo além, Gaus pergunta “E isso significa muito para você?”, ao que Hannah Arendt responde: “Muito. Sempre me recusei conscientemente a perder minha língua materna. Sempre mantive certa distância do francês, que eu falava muito bem, e do inglês, em que hoje escrevo”. Há, então, o conhecimento e o domínio de outras línguas, a capacidade linguística de expressão mais justa e adequada em outras línguas, a possibilidade de se comunicar, pensar, escrever e se fazer entender em outras línguas, mas também há a recusa apaixonada em exilar-se completamente, em alienar-se de uma vez por todas de sua cultura e de sua história, a recusa em prescindir da própria língua, de abrir mão dela, de mergulhar totalmente numa estrangeiridade que, no limite, lhe furtaria de si mesma. Essa é a razão pela qual ao ser interrogada se, agora, escreve em inglês, ela afirma: “Escrevo em inglês, mas nunca perdi uma sensação de distância dele” porque “existe uma tremenda diferença entre sua língua materna e uma outra língua. Quanto a mim, posso formular isso de maneira extremamente simples: em alemão, conheço de cor uma boa parte da poesia alemã; de alguma maneira, os poemas sempre estão ali no fundo da minha mente. Nunca vou conseguir fazer isso de novo”.

A língua é muito mais do que o veículo de uma expressão articulada de signos — ela é o lugar do pensamento e do imaginário, espaço no qual concebemos e guardamos todos aqueles bens culturais, simbólicos e afetivos dos quais lançamos mão para compreendermos ao mundo, a nós mesmos e ao outro. A língua é a condição necessária para um entendimento de si e das coisas que, no fim das contas, é que nos torna humanos e nos distingue de todos os outros animais que, bem ou mal, conhecem a linguagem e alguma comunicação. A língua é esse instrumento da nossa consciência, ou a consciência é essa dimensão de nosso caráter que só pôde se desenvolver com a língua, em função da qual, mais do que articular pensamentos ou ideias, sensações ou significados, nos permite o reconhecimento de nós mesmos e do outro, a tentativa de, por intermédio da palavra, nos dizermos e expressarmos, inventando explicações ou recriando, esteticamente, as paixões, os desejos, as aspirações incertas e informes que tão intimamente nos caracterizam. Daí Hannah Arendt reconhecer: “Faço coisas em alemão que não me permitiria fazer em inglês. Isto é, às vezes também faço em inglês, porque criei coragem, mas em geral tenho mantido certa distância. A língua alemã é a coisa essencial que restou e que sempre preservei conscientemente”. Assim, diante da pergunta de Gaus, que trai a ideia de tudo quanto se perdeu com a brutalidade da guerra e a perversidade dos campos de concentração e das perseguições nazistas – vidas, pátria, sentimento de cidadania, amigos, amores, família, vínculos etc. —, Hannah Arendt sabe que, ao afirmar que o que resta é a língua, ela responde, na verdade, não em termos de uma coisa qualquer, que residualmente fica, o resto, porque é como se ela dissesse, na verdade, que o que fica é tudo.

Preservar conscientemente a língua é reconhecer que a língua que falo é, também, a língua que habito e que me habita, o alicerce sobre o qual construo, sem grandes certezas, mas com infinitas esperanças e possibilidades, o edifício da minha própria existência. Um edifício que se ergue a partir dos usos que faço da língua, do modo como a falo, como cadencio o pensamento numa voz e numa expressão que são minhas e que são também minha dimensão no mundo, usos estes que ecoam, por sua vez, os usos que outros homens e mulheres fizeram antes de mim, que ressoam a partir de uma tradição que permanece em mim como um legado, que amplio e estendo aqueles que virão depois de mim, porque a língua é uma herança que recebo e um legado que deixo na tentativa, mais ou menos certa, mais ou menos canhestra, de comunicar a singularidade, o drama e a beleza da minha própria vida. A ideia de Hannah Arendt de preservar conscientemente a língua, de se encontrar nela, mesmo tendo vivido a maior parte de sua vida ativa e de seu pensamento fora da Alemanha, faz Günter Gaus perguntar, não sem certa surpresa, se ela se dedicou a isso “mesmo na época mais amarga”, ou seja, durante a ascensão do nazismo, o exílio, a Segunda Guerra Mundial, os campos de concentração e extermínio judeu, ao que ela retorque com uma das respostas mais fortes e simbólicas de toda a longa entrevista: “Sempre. Eu pensava comigo mesma: o que fazer? Não foi a língua que enlouqueceu”. A língua pode expressar a beleza e o horror, a paixão e o medo, a civilidade e a barbárie, a piedade e a violência, o amor e o ódio, o bom senso e a loucura, mas é preciso que estejamos conscientes de que ela é o reflexo de quem somos, do que somos, sentimos, desejamos e fazemos, logo, não é a língua que enlouquece — somos nós.

A língua dá forma, coerência e expressão ao pensamento — que é feito de linguagem, mas só pode se materializar na concretude da língua e suas práticas, seus usos, sua gramática, sua memória cultural e simbólica — e este configura não apenas a nós mesmos, mas a todos os bens simbólicos, os discursos, as obras literárias, os hábitos, costumes, tradições, formas de agir e se comportar que constituem nossa sociabilidade e a cultura na qual nos situamos. Mas ao contrário do que parece, não há uma hierarquia clara nesse jogo, antes, o que temos é uma franca relação de mutualidade entre língua e pensamento. Não há pensamento que não encontre sua forma de expressão sem a língua; não há língua que não traduza uma certa forma de ver, pensar, viver e sentir o mundo. Quando Hannah Arendt sugere que, em face da loucura nazista, não foi a língua que enlouqueceu, ela nos faz lembrar que a língua, com sua história e seus patrimônios imateriais, preserva o melhor e o pior de nós mesmos e que somos sempre nós a decidir o que desejamos fazer do mundo, das coisas, de nós mesmos e do outro quando pensamos, refletimos, imaginamos, criamos e nos esforçamos para forjar, na língua e através dela, um sentido para tudo quanto vivemos. Sob muitos aspectos, a afirmação de Hannah Arendt guarda estreita relação com a ideia de Walter Benjamin na sétima tese de seu ensaio “Sobre o conceito da História”,[7] na qual ele formula a hipótese de que, na nova historiografia, o materialismo histórico, que entende a história e a cultura a partir das tensões e conflitos materiais que as desigualdades sociais, a exploração do homem e a luta de classes produzem, pôs fim ao método de narrar e interpretar a história fundado na empatia. Isso porque, de acordo com Benjamin, o “objeto de empatia do historiador de orientação historicista” é o vencedor. O que quer dizer que o historiador clássico narra e interpreta a história e a cultura a ela ligada da perspectiva daqueles que, detendo o poder político, econômico, social ou religioso, não importa, triunfaram e triunfam sobre as massas de humilhados e ofendidos da terra.

Para Benjamin, em “cada momento” da história, “os detentores do poder são os herdeiros de todos aqueles que antes foram vencedores. Daqui resulta que a empatia que tem por objeto o vencedor serve sempre aqueles que, em cada momento, detém o poder”, fazendo com que “aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos” integrem “o cortejo triunfal que leva os senhores de hoje” a passarem “por cima daqueles que hoje mordem o pó. Os despojos, como é da praxe, são também levados no cortejo. Geralmente lhes é dado o nome de patrimônio cultural”. Assim, de acordo com Benjamin, todas as grandes obras da nossa cultura trazem consigo a marca indelével de uma ambiguidade perturbadora: elas são produzidas por homens, mulheres, artistas, filósofos, escritores, músicos ou pensadores que, apenas rara ou ocasionalmente, estão entre aqueles que triunfaram sobre a história, a política, a sociedade, as próprias demandas da vida, mas são sempre essas mesmas obras que acabam sequestradas como patrimônio de uma cultura, a burguesa, que se ergue sobre a exploração, o domínio e o jugo daqueles que quase nada têm ou tudo perderam. Nesse sentido, Benjamin afirma que esse “patrimônio cultural provém, na sua globalidade, de uma tradição em que ele [um observador distanciado] não pode pensar sem ficar horrorizado. Porque ela deve a sua existência não apenas ao esforço dos grandes gênios que a criaram, mas também à escravidão anônima de seus contemporâneos”. Por essa razão, quando Hannah Arendt diz que, diante do horror nazista, de sua loucura autoritária e destrutiva, não foi a língua que enlouqueceu, ela sabe que a língua comporta a história dos vencidos e dos vencedores, da civilização e das ruínas da civilização, das vítimas e dos algozes, dos sobreviventes e dos mortos, da concórdia e da violência — ela sabe que a língua preserva a nossa cultura, mas ela também sabe que, por conta do que somos e do que podemos fazer, da força e da brutalidade que rege o espírito dos donos do poder, não há, como sugere Benjamin, “documento de cultura que não seja também documento de barbárie”.

Se diante da loucura dos tempos, da paixão desordenada ou perversa dos homens, do desejo de conquista e de poder daqueles que movem a grande roda da história, o que resta é a língua, cabe a nós, aqueles que pensam e falam nessa mesma língua, a tarefa de protegê-la e resguardá-la, juntamente com o pensamento, as ideias e os afetos que ela conforma, do assédio daqueles que, sob a máscara da civilidade, mal dissimulam a condição de bárbaros às portas da civilização. Proteger a língua, então, é lutar e resistir para que ela não se converta em instrumento do ódio, da violência e da loucura que obliteram a reflexão, interditam o pensamento, arruínam as possibilidades de uma comunicação compreensiva, que se fundamente no respeito ao outro, e sabotam as condições reais de um franco entendimento entre os homens. Preservar a língua implica reconhecer, como o faz Hannah Arendt, “que não há substituto para a língua materna”, que muitas pessoas, expatriadas como ela, “podem esquecer sua língua”, que “todas conseguem falar certo. Mas falam numa língua com um clichê atrás do outro porque a produtividade que a gente tem em nossa própria língua acaba quando a gente esquece essa língua”. Nossa relação com a língua, desse modo, deve ser, antes de tudo, uma relação de permanente reconhecimento, uma forma de ler o mundo e lhe dar, tanto quanto isso é possível, sua mais justa, adequada e necessária expressão, um meio para fazer do pensamento comunicação, para alcançar algo de substancial em si mesmo, mas também para alcançar o outro e abrigá-lo como parte de nossas experiências, do fundo mesmo de nossa existência, nunca para destitui-lo ou subjugá-lo. É verdade que, na nossa sociedade, não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie e, por isso mesmo, cabe a nós, enquanto sujeitos de e da cultura, o trabalho de resistir ao espírito do tempo, à sanha da loucura e ao assédio do despotismo, sejam quais forem suas formas, com as armas que o conhecimento e a própria cultura nos oferecem.

Fazer uso da língua, então, é colocar-se conscientemente dentro da própria história, a pessoal, que se configura com a nossa existência e a partir de nossas ideias, do que sentimos e desejamos, do que pensamos e fazemos, de nossos afetos e impressões, e a coletiva, que partilhamos com o grupo, a sociedade, a cultura e com o gênero humano, essa comunidade global de outros homens, povos, países e culturas. Se nós somos os responsáveis por nossos gestos e ações, se estes constituem nossas vivências, as mais íntimas ou as mais públicas, se as vivências dão corpo e fundamento à existência que forjamos para nós mesmos, é a língua que pode pensar o pensamento e dar sentido aos nossos gestos, ações, vivências e ideias — é a língua que pode significar e esclarecer minimamente o conteúdo da nossa existência, a razão de sermos quem somos, a aventura de estarmos vivos aqui e agora, neste tempo e lugar, confrontados pelo desafio de habitar um mundo que não podemos compreender de todo e de fazermos algo de nós mesmos, que nos justifique a vida e que nos prove que não somos o último dos homens. O que está em jogo, então, na língua é sempre mais do que a própria língua ou a expressão sintática, ordenada, lógica e linguisticamente articulada que ela pode dar ao pensamento, o que está em jogo é o modo como pretendemos transformar, um pouco que seja, o mundo e a cultura que nos abrigam, assinalam, confrontam e inquietam. Se tudo o que nos resta, quando despojados de tudo, é a língua, ela passa a ser nossa salvaguarda diante das coisas, o nosso guia em face da realidade e a única ponte da qual dispomos para vencermos a distância entre nós e o outro. Dessa forma, pensar é também pensar a língua, buscar sua melhor expressão, seu vínculo inalienável com a cultura e os bens que ela faz circular, os documentos em que ela ganha forma e nos revela um pouco mais de nós mesmos. Pensar é também pensar na natureza mesma das ideias, compreender como elas surgem, como se concebem e nos falam a partir da língua.

Não basta, portanto, pensar apenas, é preciso também que se pense, além do conteúdo da ideia, o modo como esse conteúdo, na consciência mesma, ganha forma em função da língua e a partir dela se expressa de acordo com a necessidade, a conveniência ou o interesse que demanda a expressão. Por exemplo: um jornalista, ao escrever uma reportagem ou um artigo de opinião, deve privilegiar, na expressão, a forma linguística mais objetiva, descritiva e informacional possível em relação aos fatos reportados e à compreensão desses mesmos fatos, logo, pensar a língua, nesse caso, é reconhecer que ela deve dar conta de um discurso cujo conteúdo pressupõe a descrição de fatos, eventos ou acontecimentos com a máxima precisão e o mais rigoroso respeito aos dados que se pretendem informar. Um filósofo ou cientista, por sua vez, deve considerar, ao pensar as ideias, o modo como elas devem formar, por meio da expressão linguística, argumentos reconhecíveis, consistentes com a reflexão que se propõe a fazer ou com a verdade que se propõe demonstrar, articulados com a maior exaustividade disponível e fundados numa lógica formal que elimine, tanto quanto possível, elipses, pressupostos ou subentendidos não alcançáveis pelo interlocutor, insuficiências conceituais e contradições lógicas. No entanto, ao escritor ou ao poeta, as ideias são o substrato de uma fantasia fabular ou de uma imagética rica em metáforas, símbolos e alegorias que prezam justamente por evitar que a mensagem seja imediatamente reconhecível e que os sentidos só se deem à compreensão depois de um esforço interpretativo que solicita ao leitor se colocar, em termos linguísticos, no interior das sensações, afetos, impressões ou circunstâncias que a narrativa ou as imagens criam. No caso da literatura, o que está em jogo quando se pensa a ideia e, consequentemente, a língua que lhe dá materialidade estilística e expressiva, não é necessariamente informar com precisão ou desvelar objetivamente o conteúdo de verdade dos argumentos, mas a possibilidade de, verossimilmente, reproduzir, no espírito do leitor, o sentimento mesmo que a linguagem literária conforma.

Não se trata, claro, de pensar o pensamento, as ideias, a língua numa atitude de onfalópsico, ou seja, de acordo com aquela tradição quietista de meditar sobre si mesmo, literalmente contemplando o umbigo em busca de uma qualquer comunicação secreta com o mistério, com Deus, com o sentido de si e das coisas. O que se propõe é que toda ideia precisa não só ser ponderada de acordo com sua natureza ou objeto de reflexão, de acordo com o que espera dizer e representar, conceitual ou figuradamente, mas também como algo que precisa encontrar, na língua, a forma mais adequada de se traduzir. É a língua quem dá o propósito e o arremate ao pensamento, logo, ela também deve ser ponderada no processo reflexivo. A expressão de um determinado pensamento deve considerar que, se estamos diante de uma reflexão filosófica ou científica, a adjetivação profusa, por exemplo, não salva uma argumentação que não tenha a compreensão e a clareza conceitual necessárias ao abordar certo problema. Do mesmo modo, um romance, ao tratar de ideias ou temas filosóficos, por exemplo, não pode fazê-lo nos termos de um trabalho conceitual, sob o risco de perder a singularidade da expressão, a particularidade da experiência humana e das ideias articuladas à representação de uma vida concreta, que pareça desdobrar-se, em termos de vivência, diante dos olhos do leitor no instante mesmo em que ele lê. A poesia, por sua vez, precisa encontrar, no domínio da língua, uma expressão simbólica que seja capaz de fazer encarnar, de traduzir em imagens e motivos, não só a ideia, o pensamento, mas também a dimensão emocional, sensível, que ela busca emular por meio da língua. Assim, pensar as ideias é considerar que elas dependem tanto da demanda expressiva da qual são a finalidade última, isto é, da forma da expressão, quanto compreender que toda ideia, todo pensamento é um construto que se faz a partir da língua, em função dela, e que a língua, por sua vez, nos impõe uma estrutura complexa, objetiva, dada, um limite para a expressão, que só pode ser vencido, curiosamente, pelo entendimento profundo da própria língua e do modo como ela se constitui no substrato do pensamento.

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Benjamin em sua biblioteca

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A tradução como mapa do mundo e como reconhecimento do outro

De modo similar, traduzir é pensar a língua, o mundo, a cultura, nós mesmos e o outro duas vezes. O que também significa o compromisso de salvaguardar a língua e a cultura duas vezes — aquela língua e aquela cultura de onde a tradução parte e a língua e a cultura aonde ela deve chegar. Mas o que significa, nesse contexto, pensar a língua? Acredito que num mundo como o nosso, que já deu provas suficientes do quanto podemos ser sequestrados pelas ideias, pelos discursos, pelas ideologias e práticas as mais odiosas, pensar a língua signifique compreender que ela é a condição do pensamento e dos afetos, estando suscetível, a um só tempo, ao conhecimento e às paixões. O primeiro é da ordem da razão e da racionalidade; as segundas estão ligadas à natureza do que desejamos, sentimos, queremos, acreditamos e esperamos. Num mundo no qual a retórica política volta a mobilizar o medo — de perder o emprego, de ser assaltado ou morto, de não se aposentar, de não ter dinheiro para as necessidades mais urgentes, de ser ameaçado por tudo o que pareça, na superfície, tão diferente de nós mesmos e do modo como vivemos — é natural que as pessoas, mergulhadas numa espécie de irracionalismo instintivo, se entreguem a qualquer ilusão de autoridade, disciplina e segurança que lhes prometa combater e suprimir da vida social tudo aquilo que as atemoriza simplesmente por ser diferente delas mesmas e do que acreditam, do que sentem ou imaginam ser justo ou necessário, ainda que não se deem conta da injustiça e da absurdidade de seus desejos, de suas vontades, de seus medos. Pensar a língua, então, é confrontar não apenas as ideias que se formam em nossa vida consciente, a verdade ou a obtusidade que as cercam e que agenciam o modo como nos exprimimos, como damos vazão a elas, mas sobretudo as paixões que nos aninam, os afetos que nos constituem e o medo que pode fazer emergir a pior versão de nós mesmos.

Nesse sentido, pensar a língua é reconhecer que ela, com sua estrutura interna, condiciona o modo como pensamos, mas também que ela sempre diz mais do que, na superfície, aparenta dizer, e que esse além que a língua diz envolve tanto os sentidos que ela articula quanto os afetos, sentimentos ou paixões que estão na origem desses sentidos. Pensar a língua, portanto, é conhecê-la, no sentido racional de entendê-la como um instrumento produtor do conhecimento, mas também senti-la, como veículo dos afetos, nem sempre totalmente conscientes, que a colocam em jogo e que, ao contrário do conhecimento crítico e reflexivo, ela não pode representar com a mesma clareza ou objetividade que se pode dar ao pensamento. Por essa razão, de todas as criações humanas que fazem da língua seu fundamento essencial, a literatura surge como aquela que melhor pode realizar, num só movimento, essa dupla tarefa de pensar a língua e de nos devolvê-la como expressão sensível do que fora pensado. Isso porque não existe criação literária na qual o escritor ou o poeta não empenhem um trabalho de reflexão sobre as ideias e os afetos que busca figurar, ao mesmo tempo em que se dedica a recriar, na materialidade do texto, a experiência sensível que constitui o substrato de nossas emoções, sentimentos e paixões. A literatura é essa expressão do outro na qual eu me encontro e me reconheço, que me desloca de mim mesmo antes de me devolver a mim, mas com uma compressão nova e insuspeitada daquilo que, antes, ignorava. Assim, de todas as atividades humanas que fazem da língua parte de sua própria natureza, a tradução é uma das mais essenciais, pois que seu trabalho exige pensar a nossa língua em face da outra; pensar a obra por se traduzir em vista da obra que o tradutor deve, de algum modo, recriar na sua língua; pensar como essa obra é parte de uma cultura outra, distinta da nossa, mas que, ao ganhar forma, por meio da tradução, afeta e muda algo do nosso modo de pensar, viver, sentir, ver e entender o mundo. Isso significa que, de todas as ações humanas nas quais a língua está decisivamente implicada, a tradução é aquela que não pode nunca ignorar a alteridade sem o risco de pôr a perder, nesse gesto, a si mesma e ao outro.

Apesar de muito conhecida, principalmente pelos mal-entendidos que cria, a expressão que afirma que o tradutor é um traidor só tem algo de verdade se, no limite, o tradutor não for capaz de reconhecer que seu trabalho vai além do domínio técnico das línguas que ele mobiliza ao traduzir. Não entro, aqui, no mérito de uma discussão que busca pensar se a tradução envolve respeitar o máximo possível o sentido literal do que está dito em outra língua, o conteúdo, como se denomina muitas vezes ou, ao contrário, se cabe ao tradutor recriar radicalmente o original em sua própria língua, buscando soluções que estejam mais próximas da experiência formal que a obra original coloca em jogo; nem discutir se uma tradução é mais legítima ao conservar o sentido original da obra — não acredito sequer que seja possível falar num sentido original, que se manifestaria como expressão inequívoca da obra, a não ser se pensarmos original como aquilo que está no início, aquilo que surge e se manifesta pela primeira vez — ou se se deve “trair” esse sentido em nome de soluções linguísticas e de linguagem que, de certo modo, sacrifiquem o sentido mais direto da expressão em nome de soluções formais que estejam, na língua traduzida, próximas àquilo que, ingenuamente, se chama de “espírito do original”. Do mesmo modo, não cabe, aqui, discutir que a própria forma significa, que ela encarna os mecanismos de significação que dão coerência e reconhecimento às ideias expressas, ao conteúdo ideal. Claro que se trata de um debate teórico importante, mas o que me interessa, particularmente, é o fato de que, se o tradutor, no exercício de seu ofício, ignora que deve desempenhar a tarefa do hermeneuta, aquele que pensa a língua no instante mesmo em que interpreta a obra, e do crítico, aquele que compreende que os sentidos da obra estão, a um só tempo, nela e além dela, isto é, são parte da própria cultura, ele trai algo de fundamental em seu ofício.

O fundamento de seu ofício envolve reconhecer o fato de que ele é o mediador entre duas realidades distintas, que precisam ser compreendidas em suas diferenças substanciais; de que ele é o intermediário entre duas culturas que, ao se encontrarem, evocam o princípio básico da alteridade, aquele segundo no qual o outro deve ser reconhecido, num esforço de entendimento, como outro, ou seja, como instância que nossa identidade pode experimentar, perceber, refletir e apreender, mas que não podemos submeter a quem somos, imaginamos ou desejamos, quer dizer, não podemos reduzi-la à nossa própria identidade, sem o risco de destruir a alteridade, sem acabar com o outro. Assim, interpretar é construir sentidos; criticar é analisar e compreender esses mesmos sentidos à luz da existência, do mundo, da vida social e da cultura que nos abriga e na qual vivemos nossas relações mais significativas. O tradutor literário não pode ser apenas aquele indivíduo que acredita que o domínio técnico das ferramentas e métodos de tradução, bem como o conhecimento linguístico puro e simples, são os únicos artefatos necessários ao ofício. Ao contrário, a história nos mostra que os mais bem sucedidos tradutores são aqueles que reconhecem que a literatura, na definição de George Steiner, “lida essencial e constantemente, com a imagem do homem, com a forma e o estímulo da conduta humana” (1988, p. 22),[8] e que, por isso mesmo, traduzir envolve mobilizar um repertório de conhecimentos que abarca a imagem desse homem, de seus valores, de sua visão das coisas, da realidade e da vida, de seus afetos e cultura na qual ele se situa e que, em larga medida, é a sua dimensão no mundo. O compromisso do tradutor, então, principia com a compreensão da obra, o domínio técnico da língua, o entendimento da cultura e, sobretudo, a responsabilidade com a imagem do outro que ele entrega à sua própria língua e que ele situa no interior de sua própria cultura. E isso se dá porque traduzir exige, desde o início, a disponibilidade de compreender o outro no seu direito mais elementar: o de diferir de nós mesmos.

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George Steiner

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Nesse sentido, se evoquei o Walter Benjamin das teses sobre a história, vale roubar-lhe, para o tradutor, aquela imagem que ele criou para definir a própria natureza da história e, consequentemente, ainda que não o diga, do historiador. Benjamin começa a tese 9 afirmando que “Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto.” O anjo da história, então, é este que volta “o rosto para o passado”, sendo que “a cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés”. O anjo “gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar”. Por essa razão, “esse vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval.” O progresso, para Benjamin, é essa força que, ao invés de garantir um futuro equânime em conquistas e benefícios para todos, cria as ruínas que o historiador, num trabalho melancólico, deve buscar reconstituir, num esforço debalde, afinal, avança para o futuro de costas para ele. A imagem melancólica do anjo da história serve, sem dúvida, ao trabalho do tradutor,[9] afinal, ele também se encontra dividido entre a língua de partida e a língua de chegada, entre a cultura na qual o texto por traduzir se insere e sua própria cultura, entre pensar as possibilidades do pensamento, da literariedade e da materialidade do texto literário na língua de partida e as soluções possíveis a serem buscadas em sua própria língua. Como o anjo de Klee, o texto o empurra para sua língua, enquanto ele contempla o edifício do pensamento que constitui a obra original e sente o compromisso de não o arruinar.

Todo texto literário, então, expressa, do ponto de vista sensível, algo dos afetos humanos mais universais, aqueles que partilhamos com a comunidade dos homens e mulheres na qual nos encontramos abrigados, e algo de particular, único, que implica os modos de viver, sentir, pensar e agir, bem como as tradições, valores e formas de organização social da vida e da cultural na qual se origina. São esses elementos particulares que o tradutor deve entender e preservar, para não pôr a perder essa alteridade que se põe a falar no interior de cada língua, de cada cultura e de cada obra. É por essa razão que, nas primeiras décadas do século XIX, Goethe propôs, pela primeira vez, a ideia de uma Weltliteratur, uma literatura mundial. Preocupado com o caráter algo provinciano da literatura alemã, resultado de um país cuja unidade nacional sequer existia de fato, Goethe acreditava que era preciso conceber uma literatura nova, que plasmasse às experiências linguísticas, de linguagem e culturais alemãs as grandes contribuições poéticas não só da alta tradição ocidental, como as do legado Greco-Latino, mas também as das literaturas nacionais, como a inglesa, espanhola, portuguesa e francesa, além das literaturas do Oriente Médio e Índia, criando, assim, a ideia de uma literatura mundial, ou seja, uma rede de autores e obras, de diferentes lugares e contextos, agindo como substrato inovador na conformação de uma literatura alemã verdadeiramente original. Assim, Izabela Kestler afirma que “Goethe entende Weltliteratur não no sentido de um cânone literário de obras exemplares e muito menos no sentido de um sumário quantitativo sempre crescente de obras literárias de todas as épocas e lugares”, ao contrário, ele é um dos primeiros escritores a entender a ideia de literatura mundial como “intercâmbio e comunicação intercultural, nos quais se manifestaria o que há de comum entre as diferentes culturas, sem que se apague a individualidade que se baseia em diferenças nacionais”.[10]……..

É preciso destacar que quando Goethe concebeu essa ideia já havia, espalhadas pelo mundo, as mais diferentes traduções das mais importantes obras da história da cultura mundial, no entanto, pela primeira vez, a própria ideia da tradução passa a desempenhar, nesse projeto mundializante, o papel consciente de uma nova e mais decisiva cartografia, pois que contribuiria para ampliar as fronteiras da imaginação e para criar o mapa do mundo de uma cultura humana distribuída e compartilhada pelas mais diferentes pessoas nos mais diferentes e remotos lugares do mundo. Daí Izabela Kestler afirmar que “a ideia da universalidade da poesia combina-se no conceito goethiano de Weltliteratur à necessidade da prática da tolerância entre os povos, da aceitação das diferenças culturais e da ênfase no universalmente humano”, estando ligada, também, “aos princípios humanistas e de formação da humanidade (Bildung der Menschheit) provenientes da Aufklärung (Iluminismo). Não se baseia em ideias de homogeneização cultural e muito menos em noções particularistas, sectárias, de uma suposta superioridade cultural de determinados povos ou em ideais patrióticos”.[11] A Bildung der Menschheit, a formação da humanidade, de que fala Kestler, não diz respeito à ideia simplória e equívoca de formação como aprendizado escolar. Trata-se, na verdade, da ideia de formação como erudição, isto é, como a construção de um amplo conjunto de referências e conhecimentos que nos orientam diante do mundo e das coisas, que nos fornecem os instrumentos necessários à compreensão mais ampla e aberta dessa multiplicidade de fenômenos que constituem os modos como percebemos e interpretamos a vida, o mundo e o outro. Bildung, formação, aponta para a ideia de cultivar o espírito, de buscar, no universo da cultura, aquele conhecimento sensível capaz de nos tornar mais humanos, mais conscientes de nós mesmos e do outro, mais abertos àquelas experiências que nos permitem reconhecer como parte de uma realidade comum.

Sei que parece um tanto ingênuo, diante do estado de coisas no qual se encontra nossa sociedade e tantas outras mundo afora, diante dos fanatismos religiosos ou ideológicos, que têm levado aos ódios políticos mais insustentáveis; diante dos discursos que se fundam em preconceitos e discriminações de toda ordem; diante do desejo de cidadãos de submeter e marginalizar tudo o que lhes pareça, por qualquer razão que seja — e quase sempre por razões perversas —, estranho, diferente ou que não caiba na estreiteza moral de seus julgamentos e vontades pessoais; diante das fantasias de poder, autoridade e violência que parecem motivar tantas pessoas a partilhar das visões de mundo mais ordinárias, mesquinhas e pouco republicanas; diante do despedimento da ciência como forma de compreensão do mundo; diante da recusa ao conhecimento como baliza fundamental da opinião, sem o qual essa não passa de delírios ou fantasias de ideias que mal dissimulam a estupidez e a vulgaridade mais cretina; sei que diante de tudo isso, dessa realidade contemporânea baseada na exaltação da toleima e do vácuo de pensamento, do direito à burrice soberba e à boçalidade negacionista baseada nas visões de mundo mais tacanhas e provincianas, parece um tanto ingênuo falar em formação humanista, que privilegie o encontro com o outro, a tolerância e o respeito diante das diferenças, mas se não imaginarmos que a arte e a cultura ainda são capazes disso, se não nos dermos o direito de acreditar nisso, o que nos restaria diante do espetáculo da barbárie? O projeto de uma literatura mundial envolve, desde Goethe, a ideia da tradução como uma ponte, um caminho possível, trilhável, esse mapa do mundo que permite a escritores, leitores, sociedades e culturas se encontrarem na circulação do conhecimento e na alteridade que ele traz consigo e manifesta, a se reconhecerem uns nos outros, a contemplarem a multiplicidade de visões de mundo, ideias, afetos e sentidos que circulam pelas obras, por meio delas, e que nos desvelam mais de nós mesmos a partir do outro.

A tradução, nesse sentido, opera como o desvelamento de nossa cultura a partir das diferenças e deslocamentos que as outras culturas nos impõem, assim ela pode ser considerada, antes de tudo, como uma ética da alteridade, ou seja, ao tradutor cabe pensar a língua e compreender como o outro foi pensado por ela, ao mesmo tempo que ele deve lutar para nunca apagar o outro e suas particularidades ao traduzir. Nesse sentido, o que nos interessa é pensar que a tradução literária ocupa, no interior de nosso sistema cultural, esse lugar decisivo — maior do que o da circulação das obras simplesmente ou do contato entre literaturas e modos de expressão diferentes. A tradução é o lugar das grandes experiências compartilhadas, das formas fundamentais de sentir, pensar, compreender e interpretar o lugar do homem diante de si mesmo, do outro, do mundo que nos abriga, mas que também inventamos diariamente, e da língua que nos dá sentido e que permite não só pensarmos a nós mesmos, mas ela mesma diante de nossas experiências mais significativas. Não é por acaso que, em After Babel (2005), George Steiner argumente, de forma radical, que todo gesto de comunicação humana é, em si mesmo, um ato tradutório. Falar, se comunicar, ler e escrever implicam traduzir no sentido mais preciso do gesto: decodificar o pensamento do outro na língua em função da qual ele se manifesta, compreender a ideia a partir de sua expressão linguística e humana. Para Steiner, a tradução estaria “formal e pragmaticamente implícita em todo ato de comunicação, na emissão e recepção de todo e qualquer modo de significação, seja no sentido semiótico mais amplo ou nas trocas verbais mais especificamente”, concluindo que “compreender é decifrar. Ouvir significados é traduzir”.[12] Por isso, quando Hannah Arendt responde a Günter Gaus, diante da aparente perda de tudo, inclusive do sentido mais elementar de humanismo que a Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo, o extermínio judaico pelos nazistas, o exílio e a expatriação radical provocaram, que o que resta é a língua, o que ela quer dizer é que na língua se encontra a reserva de humanidade a partir da qual podemos nos encontrar e reconhecer em nós mesmos e no outro, no mundo e na vida, na cultura e na história, no pensamento e nos afetos. Não há nada fora da língua.

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Angelus Novus, Paul Klee, 1920

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Notas:

[1] O presente ensaio desenvolve algumas ideias apresentadas de forma menos aprofundada na conferência de abertura da XXXVIII Semana do Tradutor da UNESP/Ibilce – São José do Rio Preto, pelo que agradeço aos alunos da Turma de Tradução 2016, responsáveis pela organização da referida semana, para quem tive o prazer de ensinar e com quem tive o privilégio, cada vez mais raro, de aprender. Agradeço a todos pela gentileza de um convite que muito me honrou e aos quais, muito honestamente, dedico este ensaio. A saudade me mantém ligado a cada um de vocês.

[2] Poesia completa de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[3] Há, no Brasil, um livro com quatro traduções diferentes do ensaio de Benjamin. Trata-se de A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Organização de Lucia Castello Branco. Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2008.

[4] Em Melhores poemas. Seleção de Alfredo Bosi. São Paulo: Global Editora, 2012.

[5] Quando ela ainda era uma jovem estudante de filosofia, que se tornou amiga de seu professor e conselheiro mais próximo, o igualmente filósofo Karl Jaspers, bem como amiga e amante de Martin Heidegger, leitora e estudiosa de Santo Agostinho, Kant, Kierkegaard e do que, então, começava a se constituir como a filosofia do existencialismo.

[6] A entrevista encontra-se transcrita no volume de ensaios intitulado Compreender (2008), publicado, no Brasil, pela Companhia das Letras, em excelente tradução de Denise Bottmann.

[7] Ensaio publicado em nova tradução, de João Barrento, pela Editora Autêntica, no livro O anjo da história (2012).

[8] Em Linguagem e silêncio. Ensaios sobre a crise da palavra. Tradução de Gilda Stuart e Felipe Rajabally. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

[9] Quem me sugeriu essa comparação foi o amigo, leitor atento e colaborador de muitos anos Edison Bariani Junior.

[10] “O conceito de literatura universal em Goethe”. Revista Cult. Novembro de 2008, nº 130.

[11] Ibidem.

[12] Em After Babel. Aspects of Language and Translation. Third Edition. New York: Open Road Integrated Media, 2013. Tradução minha.

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Márcio Scheel

Márcio Scheel é Doutor em Estudos Literários e Professor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.