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Um encarceramento e quatro funerais

por Tiago Pavinatto

“Eis aqui o morto
chegado a bom porto”

Mas não vamos falar de Alberto da Silva, “um anônimo brasileiro do Rio de Janeiro”, cuja morte fora noticiada pela poesia de Ferreira Gullar. O “da Silva” do momento é outro: é Genival Inácio que, no quesito fama, pende mais para Damásio de Guimarães Rosa.

Morreu Vavá, o famigerado irmão mais velho do mais famigerado ainda Presidentiário Lula. Lula não foi ao velório; e, independentemente do seu pesar, não foi porque é vítima da jurisdição paranaense, de seu aparato morboso muito mais insensível que a dupla João Figueiredo e Ibraim Abi-Ackel. Estes, ainda vigia o regime militar, garantiram a todos os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semiaberto, bem como aos presos provisórios, a permissão para sair do estabelecimento onde cumprem a pena, mediante escolta, nos casos de falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão (Lei de Execução Penal, artigo 120, I).

Muito antes da mencionada legislação, já em 1980, Romeu Tuma, responsável pelo estabelecimento onde Lula estava recolhido, autorizou que ele comparecesse ao enterro da mãe. Parece que, em matéria de Direito penal, retrocedemos quatro décadas. Contudo, é só aparência. Nosso Judiciário, acenando para o excelsíssimo pretório em rede da inflamada turba virtual, retrocedeu, em verdade, quatro séculos.

Assentada em uma moral fanática, a “Nova Matriz Jurídica” brasileira firmada com a Operação “Lava jato”, abriu as portas para um protodespotismo Judiciário que tem permitido a “tortura elucidativa”, aplaudida com frenesi no cair do pano deste abominável teatro do suplício.

O povo vai ao delírio como se estivesse no ano de 1757 vendo o condenado Damiens, em frente à principal Igreja de Paris, carregando uma tocha de cera acesa e nu dentro de uma carroça da qual seria transferido a um palanque a céu aberto para, apertados os mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, ter queimada com fogo de enxofre a sua mão direita, que deveria segurar a faca com a qual teria cometido parricídio, bem como aspergidos chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos nas áreas apertadas para, ao final, ser puxado e desmembrado por quatro cavalos e ter seus membros e corpo consumidos pelo fogo (PELLEGRINO ROSSI, Tratado de Direito Penal, 1829).

A Polícia Federal e a Juíza da execução penal negaram o gozo do direito de Lula mediante argumentos esdrúxulos de que não havia nem helicóptero, nem pessoal disponível e nem logística possível para a saída. Nada suficiente para negar vigência ao direito do preso ou capaz de afastar a obrigação do Estado, que é responsável por quem encarcera. Resultado: além de legitimar, em absoluto, pretensão indenizatória em decorrência de danos morais por ter perdido o velório do irmão que, dizem alguns, via como pai, reforçou-se, substancialmente, a narrativa esquerdista da perseguição contra Lula.

O desastre foi endossado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o mesmo Tribunal que, ao confirmar a condenação proferida por Sérgio Moro, insistira no princípio da impessoalidade para condenar o ex-Presidente, requisito que decorre dos princípios processuais da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz. Argumento de perna curta, Lula não pôde prestar sua última homenagem só porque era Lula.

Quatro séculos… podemos argumentar que retrocedemos muito mais: coisa de 25 séculos, um quarto de milênio.

Na Grécia Antiga, a proibição do sepultamento no túmulo familial era a mais severa punição que se poderia cogitar contra alguém, pois, explica Fustel de Coulanges, toda a antiguidade estava persuadida de que, sem sepultura, a alma era miserável e que, somente pela sepultura, tornava-se feliz (La cité antique, 1864).

Os ritos fúnebres comprovavam essa crença e era tão importantes quanto a inumação: era costume, na cerimônia, chamar três vezes a alma do morto pelo nome do falecido desejando-lhe vida feliz sob a terra e lhe dizendo coisas do tipo “Que a terra lhe seja leve!”. Portanto, faltar ao funeral era faltar para com o destino eterno do jazido. No hinduísmo, outro exemplo, a falta do parente certo pode impedir o ritual no Ganges e frustrar a tão desejada quebra do ciclo de encarnações.

Tamanho temor funerário está bem ilustrado pela revolta de Antígona, personagem de Sófocles, que, a despeito do risco de ser condenada ao apedrejamento, desafiou o decreto do soberano Creonte, que, injustamente, ordenara aos cidadãos a não guardar em cova o corpo de seu irmão Polínice.

Antígona representa a luta pelo direito natural, o que chamaríamos, hoje, de direito humano fundamental, mortalmente prejudicado pelo retrocesso que temos experimentado em virtude de um ufanismo binário e ressentido da maioria.

Mas alguém há de contra-argumentar: Lula, solto, não foi ao enterro de dois outros irmãos.

Tais fatos, contudo, são argumento falacioso.

Ninguém está apto a julgar a qualidade da relação familiar entre cada ente; afeto, amor, tristeza… qualquer sentimento não corresponde nunca a grandeza calculável; não podemos discorrer sobre sua existência ou verdade porque não somos capazes; só Deus, conforme a Teologia de São Tomás, “pode conhecer os pensamentos do coração e as afecções da vontade. A razão disso é que a vontade da criatura racional só se submete a Deus (…). Daí dizer o Apóstolo, 1Cor 2,11, o que está no homem ninguém conhece, senão o espírito do homem, que nele está” (Suma teológica: I Parte – Questões 44-119. São Paulo: Loyola, 2017, vol. 2, p. 178-179).

Gostar do parente não pode ser requisito legal para que o preso vá ao funeral. E, mesmo que se admitisse essa obrigação sem a previsão legal expressa, mas por mera interpretação de princípios e de contexto, seria justo que o Direito abarcasse obrigação de sentir? Poderá o Estado exigir que se goste de alguém?

Num Estado que se pretende democrático e de Direito, a resposta é sempre negativa.

O conteúdo da reserva mental de qualquer ser humano é inacessível. É cientificamente incorreto e humanitariamente absurdo querer presumir ou exigir o real sentimento de alguém, mesmo quando muitos apontem esse alguém como um psicopata. Muitos irmãos, muitas relações, relações diversas e únicas entre si. Sentimentos não são passíveis de julgamento de acordo com evidências empíricas ou qualquer lógica.

A barreira da reserva mental, para nosso alívio, ainda é barreira intransponível, último e seguro refúgio de nossa intimidade; campo ao qual nenhum limite exterior se impõe e no qual, como Álvaro de Campos, podemos sentir tudo de todas as maneiras, ter todas as opiniões, ser sinceros contradizendo-nos a cada minuto, desagradar a nós próprios pela plena liberdade de espírito, ir para a cama com todos os sentimentos, ser souteneur de todas as emoções e trocar olhares com todos os motivos de agir.

Mas alguém ainda há de insistir contra nossa exposição: o despacho do Ministro Dias Toffoli, do STF, remiu-nos e devolveu normalidade ao nosso Sistema. Lula deixou de ser vítima e, vilão lombrosiano que é, desistiu de sair para encontrar o consolo da família.

A decisão, cabe lembrar, foi concomitante ao enterro de Vavá. Assim, respondemos a insistência de nosso leitor lavajatista com a poesia de Camões:

Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.”

Na mesma cova, jazem Vavá e nossa Democracia. Memento mori, Excelências.

Tiago Pavinatto

Tiago Pavinatto é advogado. Graduado, Mestre e Doutor pela Faculdade de Direito da USP do Largo São Francisco. Coordenador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo (PUC-SP). Autor de “A Condição do Fanático Religioso”.