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Bolsonaro e o Brasil na Era das Democraturas

Foto: Dida Sampaio/Estadão

por Rodrigo de Lemos

De Lula a Bolsonaro, a morte da palavra pública

Para Adorno, muitos dos programas de televisão dos anos 50 e 60 reproduziam a arrogância, a passividade intelectual e a credulidade que condizem com o totalitarismo, mesmo quando esses mesmos programas portavam explícitas mensagens antitotalitárias. Com efeito, pouco se compreende da ascensão do nazi-fascismo e do comunismo sem serem levadas em conta essas tecnologias industriais e verticais da palavra, da imagem e do som que foram antes os jornais e o cinema, depois o rádio e a televisão. 

Tanto quanto algo possa se dizer passado na história humana, essas advertências têm toda a aparência de haverem datado neste início de século XXI. Não porque tenham-se debelado os perigos da tirania, mas porque, com as redes sociais, o espectro do despotismo emerge daquilo que nos parecia outrora ser-lhe mais frontalmente contrário, por se apresentar como expressão de liberdade e de democracia: a horizontalidade da palavra e sua circulação “em rede”, livre das proibições tradicionais e dos antigos parâmetros de aceitabilidade. Assim como não se entende como puderam se difundir os símbolos e as imagens dos grandes ditadores da primeira metade do século XX sem se considerar sua reprodução em escala industrial pelos meios de massa, tampouco se compreendem figuras de pendor autoritário surgidas no seio mesmo das democracias contemporâneas como Trump ou Bolsonaro ignorando-se esse novo regime de produção e de reprodução da palavra instaurado pelas redes sociais.

No caso brasileiro, as novas condições de discurso propícias ao bolsonarismo, por certo, não se restringem ao domínio das redes sociais como modo de existência social tout court e se enraízam na própria história política contemporânea. Com essas novas condições, os sentidos de vocábulos como “populista” ou “autoritário” mudaram por sua vez de acepção. Um ou outro já foram utilizados para caracterizar regimes tão diversos quanto o Estado Novo, de Getúlio Vargas, a Ditadura Militar e um possível governo Bolsonaro. Basta, no entanto, ouvir os pronunciamentos de Vargas ou dos ditadores militares para dificilmente reconhecer parentesco com a linguagem bolsonarista. A palavra de Vargas ou de Médici ou de Geisel jamais se propunha como mímica do que pensa e do  diz o “homem do povo”. Ela podia por vezes soar como a de um pai dedicado a seus milhões de filhos, mas de um pai que ocupava um lugar definitivamente superior; é o que sugere a postura de Vargas durante as alocuções nos estádios cheios de “povo” nos anos 30 e 40. Ela podia ainda ser a voz impessoal dos tecnocratas da Ditadura, com sua dicção como que inumana, falando em nome do interesse nacional para além de partidos e de ideologias. Em ambos os casos, estamos longe da precariedade da palavra de Bolsonaro, portadora de uma espontaneidade que mal esconde seu artificialismo: a de parecer por um lado palavra “popular”, recém saída do almoço dominical, ao mesmo tempo em que já nasce visando a seu impacto e a sua circulação horizontal nas redes sociais.

Nessa sua autenticidade estudada, a linguagem bolsonarista prolonga e aprofunda o sulco cavado na vida pública por aquele discurso de que a Nova Direita se apresenta como a principal antítese: o lulismo, que se abre pela cerimônia por assim dizer de redenção popular que foi a posse de Lula em janeiro de 2003, com as televisões do país tomadas por imagens de multidões mergulhando nos espelhos d’água em Brasília e se amontoando às portas dos palácios. Era o triunfo da mitologia da turba empoderada, confirmando aquela observação de Tocqueville de que o respeito às formas é um fardo para as democracias seguras demais de si. Essa mesma época lulista termina com a euforia do PIB e com as declarações de Lula de que o Brasil enfim “se encontrou consigo mesmo”, como se durante o governo dele, e na pessoa dele, homem do povo, o país finalmente tivesse realizado seu destino. “Nunca antes na história deste país” – uma formulação que não apenas relegava as contribuições de dirigentes e de gerações anteriores (confundidas na mesma designação de “elites”), como também dava mostras de excessiva autoconfiança, ignorando a triste história brasileira de explosões de crescimento seguidas de longas estagnações.

Entrementes, durante os dois mandatos de Lula, o discurso oficial foi despido de muito daquilo que, mesmo em nossos momentos de populismo mais agudo, ele carregava de vertical, de próprio e de distinto do que se diz no quotidiano. Tornaram-se comuns, na boca presidencial, palavrões, expressões familiares, metáforas banais ou ainda a reprodução de preconceitos e de ideias comuns sob a aparência de parecerem “populares”, de comunicarem com “o povo” – o florilégio das impropriedades lulistas é rico. Boa parte da falência do discurso de Dilma pode ser reportado à sua tentativa – dela, uma pura apparatchick – de emular a “espontaneidade” inimitável de Lula. Tanto é assim que a sintaxe e a semântica da ex-presidente se esfarelavam menos quando ela assumia a própria voz algo professoral do que quando tentava falar “como e com” o povo. Os escândalos, a crise econômica – para além desses fatores, é no sentido discursivo que o lulismo, diverso do bolsonarismo sob tantos outros aspectos, acabou legando-lhe condições favoráveis: ao mandar pelos ares as travas da palavra pública e ao fazer passarem impropriedades sob o pretexto de franqueza, de fidelidade ao sentir “do povo”. Degradou-se assim tanto a representação do poder quanto a da própria população de que o poder se pretendia servo e imagem. A mitologia da turba empoderada desde então só fez trocar de camiseta.

Lula não é Bolsonaro. Podemos nos interrogar quanto à extensão e ao valor do legado lulista à democracia, e por certo que sua atitude cuidadosamente desleixada quanto à palavra permitiu temeridades. Resta que o endurecimento do discurso político com o surgimento de Bolsonaro é tanto estarrecedor quanto inegável. Mesmo no tempo de Lula triunfante e à vontade demais com a palavra pública, não se viram descalabros como mãos imitando armas enquanto símbolo político. Na melhor das hipóteses, a agressividade verbal de Bolsonaro não é o bastante para repelir um eleitorado progressivamente acostumado a uma palavra degradada na política e no entretenimento de massa; na pior, constitui mesmo um dos maiores atrativos de sua persona. Pode-se talvez remeter esse recrudescimento da violência retórica na passagem do lulismo ao bolsonorismo a diferenças tanto de constituição psicológica entre os dois homens quanto dos grupos a que pertencem. Ainda assim, certamente contribui a essa radicalização a ligação muito mais estreita de Bolsonaro com as redes sociais, que modelam seu discurso ao mesmo tempo em que ele as modela e que elas o reproduzem, como num corredor de espelhos. 

Foto: Dida Sampaio/Estadão

Novas mídias, novo despotismo?

É na sua relação com as mídias sociais que a figura de Bolsonaro ganha uma significação menos brasileira e paroquiana, para além do que ela tem de continuidade e de negação quanto ao lulismo. Ela acompanha uma tendência global que atravessa regiões de cultura e de desenvolvimento humano muito distintas, unidas entretanto pela sua entrada de pleno na última modernidade representada pelas redes sociais. Pode ser o caso do nacionalista hindu Narendra Modi, primeiro ministro indiano, que se propõe a restaurar a ferro e a fogo a identidade religiosa do país às expensas das existências social e civil das minorias muçulmanas, garantidas outrora pelo ideal pluralista que presidiu à Independência, em 1947. Significativamente, Modi se valeu maciçamente do Twitter a fim de se fazer eleger em 2014 naquilo que a BBC chamou de “primeira eleição pelas mídias sociais“, e é também pelo Twitter que ele mantém um canal direto com um eleitorado formado por maiorias hinduístas de que alguns setores se mostram por vezes pouco pacientes quanto à diversidade religiosa do país. Também foi o caso de Donald Trump, que seguiu dois anos depois de Modi a mesma tática pelo Twitter, encontrando o mesmo sucesso, ainda que com um discurso mais brutal e menos articulado que o de líder indiano. Essa “palavra livre” de Trump, por sua vez, mostrou o caminho ao êxito de Bolsonaro no Facebook e no WhatsApp, e é significativo que ambos tenham elegido como modelo de suas intervenções públicas uma indignidade intelectual e linguística que eles mesmos atribuem ao homem comum. 

Seja porque essa palavra toque verdadeiramente as cordas de uma parte mais e mais brutalizada do eleitorado, seja porque ela própria alimente a brutalização que ela anuncia, o fato é que a estratégia funcionou. Os laços de identificação entre os eleitores e o líder que os interpela como que individualmente e na sua suposta linguagem por meio das redes sociais têm se revelado como fonte de uma fidelidade renitente. Bolsonaro pode confessar a mais negra ignorância em qualquer assunto; talvez ela finalmente nos reconforte, ressoando fortemente na ignorância que cada um sente ser a sua nesses mesmos assuntos, uma vez confessada com tanto candor. Em todo caso, como a fronteira entre a palavra política e a palavra privada se embaralhou, quando Bolsonaro ou Trump pronunciam alguma barbaridade, seus apoiadores veem um “deslize”, como uma bobagem que poderia surgir em uma discussão entre amigos. É sob esse aspecto que uma das frases mais representativas da nossa época foi emitida em um comício de Trump, durante o qual ele admite a possibilidade de atirar em alguém na 5a. Avenida e ainda assim não perder seguidores – frase representativa não só pelo que ela sugere de sinistro na boca de um presidenciável americano, mas sobretudo pelo que contém de tortamente verdadeiro.   

O sentimento de uma relação imediata com o líder na nossa época se funda menos em alguma comunidade real de interesses do que no esmorecimento da autoridade dos antigos mediadores entre o poder e o indivíduo. Trata-se de um esgotamento que acompanha o surgimento de novas tecnologias da comunicação – fato que está longe de ser inédito na história humana. A difusão da imprensa e a alfabetização massiva no norte da Europa permitiram o domínio dessa tecnologia da palavra que é a leitura, gerando uma ruptura religiosa e relegando o clero católico, outrora mediador da palavra escrita, a um anacronismo e a um declínio na sua função social cuja dimensão só se revelaria na longa duração, na escala dos séculos. A industrialização da palavra, da imagem e do som entre o fim do século XIX e a primeira metade do XX criaria também industrialmente toda uma classe de cantores populares, de atores de cinema e de celebridades do jornalismo, propulsionados ao lugar ocupado nas hierarquias sociais até seu advento pelos restos da então ainda prestigiosa aristocracia. Atualmente, as tecnologias de circulação horizontal da palavra desautorizam os mesmos personagens que outrora ocupavam o alto da cadeia do discurso – jornalistas, cientistas, acadêmicos, consultores e experts, cuja palavra pode facilmente se equalizar à de qualquer um no fluxo contínuo das redes sociais e que são denunciados como elites “descoladas da realidade do povo”. Não é por outra razão que, onde quer que a onda populista ganhe força, são esses seus inimigos prioritários: é como se o cidadão dessas novas democracias populistas se impacientasse quanto a qualquer intromissão crítica na sua relação fantasmogoricamente imediata e pessoal com a figura de poder.

Novamente, trata-se de um fenômeno que atravessa culturas e níveis de desenvolvimento. Trump explorou o anti-intelectualismo plurissecular americano para apresentar-se como porta-voz do povo contra as “elites costeiras” das metrópoles. Para contrariar essa imagem estudada, não basta lembrar aos seus apoiadores que Trump é um pleno representante dessas mesmas elites: por esse termo, eles não referem forçosamente os donos do poder econômico e político em Nova York ou Washington, mas os “formadores de opinião”, as elites da palavra nas universidades e nas redações de jornal. Partindo do imaginário de uma Turquia dividida entre turcos brancos (os turcos europeizados das metrópoles) e turcos negros (as populações tradicionalmente islâmicas da Anatólia), Erdogan se serve do mesmo expediente, ao mesmo tempo se dizendo “um irmão”, “um dos turcos negros”, e denunciando seus contestadores como elites do desprezo, como quando dos protestos de 2013 na praça Taksim: “Eles dizem: somos artistas, somos escritores, temos capital, nosso voto não é igual ao do Ahmet ou do Mehmet do interior. Bebem whisky com vista para o Bósforo e desprezam o resto do povo.” É a versão turca das vociferações no Ocidente contra a esquerda-caviar.

As palavras do homem forte da Turquia oferecem frequentemente chaves para essa nova sensibilidade política. Ao acusar as classes médias globalizadas que lhe fazem oposição como presunçosas e inigualitárias, Erdogan usa de uma retórica de democrata radical – o que, de uma estranha maneira, ele é. Salvo que a democracia para personagens como ele tem pouco a ver com o ideal pluralista que intelectuais de inclinação liberal emprestam ao termo e remete mais àquele regime de “tirania das maiorias” que Tocqueville identificou como a degeneração despótica de uma democracia compreendida como pura e simples expressão da “soberania popular”. Em uma democracia liberal, as elites da palavra – no caso dos Estados Unidos de 1830 estudados por Tocqueville, as associações livres e os magistrados –  exercem a função de apresentar contra-pesos ao sentimento popular, que numa “pura democracia” igualitária tenderia a ditar perigosamente a formação e os atos do governo, movido por uma vontade unânime. Esses corpos intermediários entre o governo e o cidadão têm por função, entre outras, moderar a soberania popular, formulando em termos aceitáveis e por vezes barrando as opiniões e as exigências majoritárias suscetíveis de atentar às liberdades públicas e individuais: não cabe, em um regime livre, o povo, por soberano que seja, restringir sua própria liberdade de expressão, determinar previamente ao processo legal condenados e inocentes ou autorizar a perseguição a minorias religiosas, étnicas e religiosas. 

Erdogan está correto ao dizer que o voto do intelectual de Istambul vale o mesmo que o do Ahmet que mora no campo; o que há de insidioso é usar do aspecto aritmético da democracia para esmagar as liberdades do intelectual de Istambul sob o manto da proteção às opiniões religiosas e comportamentais do camponês. Esse esmagamento das liberdades públicas e individuais a partir mesmo do funcionamento e do imaginário da democracia como “soberania popular” só se torna possível pela desmoralização das elites da palavra, acelerada contemporaneamente pela horizontalização do discurso nas redes sociais. Regimes desse tipo inclusive têm nome, e não é incomum ouvir no debate público francês os governos da Turquia, da Rússia, das Filipinas ou da Hungria serem referidos por especialistas e por comentaristas como “democraturas”.

O Brasil sob o torniquete da democratura?

A presidência da República de Bolsonaro representaria uma entrada do Brasil na era das democraturas? Não faltam elementos indicando esse caminho na trajetória de Bolsonaro. Há as ameaças de criminalização dos opositores. Há as simpatias militaristas. Há os constrangimentos às elites da palavra (ao Judiciário, a jornalistas, a professores). Há a retórica provocadora, com o elogio sem desculpas a torturadores enquanto torturadores e a ditadores enquanto ditadores. Há a entronização das maiorias como sal da terra democrático (“As minorias têm que se curvar às maiorias […] As minorias que se adequem ou simplesmente desapareçam”). Há, por fim, o vínculo que se pretende “direto” com o povo, por meio da mimetização do que seriam a sua linguagem e seu pensamento, passando ao largo das antigas tecnologias verticais da comunicação em favor da horizontalidade das redes. Cada um desses fatores isoladamente já bastaria a causar preocupação; seu conjunto é alarmante. Se essas promessas se realizarão, isso depende menos do compromisso do governo com qualquer ideal pluralista do que dos obstáculos que uma sociedade complexa como a brasileira possa oferecer. 

A verdade das democraturas se revela no tempo longo, o que sugere, por um lado, o possível equívoco tanto de antibolsonaristas que temem um simples retorno ao nazi-fascismo ou à ditadura militar, com seus tanques e suas marchas de camisas pretas; por outro, o de liberais por demais seguros da “solidez da democracia brasileira”. Nas sociedades que trilharam essa via, sob a aparência de normalidade – eleições, imprensa livre, “instituições funcionando” – as placas tectônicas se moviam em direção a um desfecho em câmera lenta. Chavez chega ao poder em 1998 e apenas em 2006 declara ao Congresso seu intento de transformar a Venezuela em um Estado socialista. Putin é indicado como primeiro-ministro em 1999, quando a Rússia parece a caminho da “solidez” democrática, mas o caráter autoritário do governo só se faz incontestável após os protestos contra as eleições fraudulentas de 2011. Dez anos separam a chegada ao poder de Erdogan na Turquia (em 2003) das manifestações na praça Taksim, após as quais seu governo adota um perfil descaradamente iliberal, e é dois anos depois da tentativa de golpe de 2015 que o chefe de Estado tem seus poderes expandidos por um referendo, no respeito da sagrada “soberania popular”. A imagem da passagem da democracia para a democratura não é, como a dos golpes no século XX, a de um desmoronamento súbito, mas a de um lento torniquete.

O que se pode esperar caso o torniquete de uma democratura sob Bolsonaro se aperte no Brasil? O estrangulamento de seguranças jurídicas e de liberdades públicas em outros países que vivem esse processo pode indicar pistas num exercício de visão prospectiva que não é apenas o de uma estéril futurologia.

Rodrigo Duterte. Foto: AFP/ TED ALJIBE

As Filipinas podem ser distantes do Brasil em termos geográficos, mas a história recente dos dois países não deixa de apresentar paralelos. Ferdinando Marcos ascende ao poder em 1965, declara uma lei marcial em 1973 e deixa o poder em 1986; essa trajetória temporal segue de perto a curva de estabelecimento, de brutalização e de esgotamento do regime militar brasileiro. Em ambos os casos, segue-se uma democracia disfuncional abalada por crises em cascata: crises de corrupção, crises ligadas ao tráfico de drogas, crises de criminalidade. Essas crises desembocam, em 2016, na eleição de Rodrigo Duterte, antigo prefeito da cidade de Davao, que triunfa sobre os partidos tradicionais vendendo-se como um líder antissistema. Suas mensagens: combater a frouxidão das leis e a degradação da classe política, a golpes de retórica brutal que não deixam de lembrar a de Bolsonaro. Era preciso, segundo Duterte, reforçar os mecanismos de repressão ao crime e ao tráfico de drogas por quaisquer meios que fossem, no desrespeito, se necessário, do Estado de direito, num movimento que especialistas já classificaram como “populismo penal“. A democratura de Duterte teria deixado até o momento um rastro de 20.000 execuções extrajudiciais. Somem-se a isso, seguindo o receituário de Trump, de Putin e de Erdogan, a intimidação de corpos intermediários como jornalistas, acadêmicos, membros do judiciário e associações de direitos humanos – estas últimas, alvos preferenciais de Duterte, em outra semelhança com Bolsonaro. Nada que tenha até o momento embaciado sua popularidade; herói das “maiorias democráticas”, Duterte goza de 80% de aprovação popular (os dados são da Foreign Affairs), apesar ou por causa da truculência e dos desmandos.  

Também o Brasil partilha com outros países de desenvolvimento médio como a Turquia e a Rússia um histórico de autoritarismo político e um projeto de laicidade deixado a meio caminho. Trata-se de uma mistura que pode fomentar uma versão nacional de um conservadorismo religioso de Estado como aquelas promovidas por Erdogan ou Putin. Talvez não se reúnam imediatamente as condições para a imposição de uma religião de Estado em um país tão diverso. Ainda assim, – e a dispersão tentacular do evangelismo pode desempenhar função análoga à do islamismo no Oriente – deve ganhar força um discurso que assimila a defesa dos costumes e das opiniões do “povo” à preservação de um senso religioso comunitário, especialmente em oposição a um inimigo secularista, “globalista” ou “hostil à família”. Nesse sentido, não é improvável que um governo de Bolsonaro claramente simpático a grupos religiosos conservadores não apenas ataque direitos civis já adquiridos por minorias sexuais (ele teria assinado um documento se comprometendo junto a grupos católicos a rever o casamento homossexual) mas também, à imagem do que se passou na Rússia, que se aprovem legislações abertamente contrárias a liberdades individuais, como a lei anti-gay russa que tem por intuito, textualmente, “proteger crianças de informações que defendam a negação dos valores da família tradicional”. Uma lei assim vaga serve, bem entendido, a reprimir toda e qualquer coisa, mesmo demonstrações públicas de afeto entre dois homens ou duas mulheres. A linhagem com a retórica parlamentar de Bolsonaro como herói anti-kit gay é direta, e as consequências poderão ser sentidas para além da pura militância homossexual, atingindo outras formas de ativismo que atentem ao que seria a opinião religiosa majoritária (feminismo, secularismo, entre outros).

Finalmente, a Índia de Modi anuncia outro desenvolvimento de possível de uma democratura bolsonarista. Quando de sua eleição, o primeiro-ministro foi festejado pela Economist ou o pelo Financial Times como um reformador  pró-business em uma Índia cujo legado dos governos estatizantes teria atrasado o desenvolvimento do país; foi menos mencionado que o partido de Modi, o BJP, era de orientação nacionalista hindu que, em 2002, quando Modi governava a província do Gujarat, foi alvo de acusações de leniência ou de beneplácito quando uma onda de violência islamofóbica causou a morte de 900 a 2000 muçulmanos. Modi e o BJP são acusados da mesma leniência ou do mesmo beneplácito, agora em nível nacional, quanto aos grupos nacionalistas hindus que seguem atacando e linchando muçulmanos, em episódios chamados de beef-lynching, quando massas de hinduístas cultores de vacas promovem a morte de muçulmanos que transportam ou consomem carne de gado. Na Índia de Modi, a pauta liberal pró-business teria se casado muito bem com uma política de identidades religiosa cujos resultados a curto prazo são bárbaros e a longo prazo incertos – a experiência indiana pode estar por trás da prudência, quando não da hostilidade, que tanto o Financial Times quanto a Economist demonstram por Bolsonaro, malgrado a presença de Paulo Guedes e suas tentativas de cortejar o mercado. Essa experiência indiana também pode nos ensinar sobre uma deriva possível do próprio governo de Bolsonaro, quem sabe capaz de mobilizar pelas redes sociais uma franja de extremistas para fazer a política suja contra opositores ao mesmo tempo em que deixando o governo com as mãos limpas para condenar molemente a violência política, como Modi já fez no Twitter. De resto, trata-se de uma conformação comum a outras democraturas, que usam de estímulos mais ou menos evidentes à radicalização violenta de seu campo político, como mostram os vínculos de Trump com os supremacistas de Charlottesville, de Erdogan com a Fraternidade Muçulmana em sua caça a comunidades cristãs na Turquia ou de Putin com radicais nacionalistas que fizeram a segurança da “Mãe Rússia” contra a degradação moral trazida pelos turistas estrangeiros durante a Copa do Mundo. 

Esses paralelos internacionais se fundam em linhas de força presentes na situação brasileira e no lugar que nela ocupou a figura de Bolsonaro até agora; nada garante não apenas que esses cenários venham a se reproduzir tais quais e em mesmo grau que em outras latitudes como também que não possamos adicionar elementos próprios, baseados na cultura e memória nacional, a esse repertório de práticas híbridas entre democracia e ditadura. Talvez um vetor de verticalidade tecnocrática se instale mais fortemente no Brasil do que em outras democraturas, tendo em vista a tradição das Forças Armadas brasileiras e a influência de que os militares poderão gozar em um futuro governo de Bolsonaro. Nada disso deve reverter, entretanto, a tendência dominante em um regime dessa natureza em nossa época, em que o autoritarismo, como todo o resto, será tribal ou não será. Como legado, nossa era de democraturas deve deixar uma interrogação a toda uma geração criada sob o predomínio da mentalidade liberal após a queda da União Soviética, acostumada a associar direta e proporcionalmente liberdade e democracia. Quando e se a onda passar, ela deixará em seu refluxo a necessidade de determinar novamente os limites a partir dos quais vontade popular e liberdade individual deixam de se reforçar mutuamente e se abrem franca guerra.

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.