Cinema

Cinema Samurai (Parte 4) – A epifania do caos no cinema de Kihachi Okamoto

por José Francisco Botelho

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Aviso: Este ensaio contém detalhes sobre a trama dos filmes

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No assombroso desfecho de “Medeia” — peça escrita por Sêneca no século I d.C. —, vemos a personagem-título ascender aos céus numa horrenda biga alada, após trucidar os próprios filhos, perante os olhos impotentes de seu amante infiel, Jasão. Segurando os restos da prole massacrada, o malfadado herói vê Medeia desaparecer nas nuvens e exclama: “Sim, vai pelo éter sublime dos espaços altíssimos, para provar que não há deuses lá onde tu te elevas”. Como Jasão, o leitor é deixado a remoer um dilema perfeitamente terrível. O que seria pior: constatar que vivemos num universo aleatório, que nem sequer toma conhecimento de nossas agruras; ou imaginar a maquinação de poderes obscuros que dirijam nossas desgraças, como arquitetos de labirintos? Não havia resposta há vinte séculos, e parece improvável que a encontremos num futuro próximo, mas, para quem quiser enfiar o dedo nessa ferida existencial, não faltam opções nas letras e nas telas ­— e a sugestão de hoje são as duas obras-primas de Kihachi Okamoto: Samurai Assassino (1965) e A Espada da Maldição (1966).

Pouco conhecido no Ocidente, Okamoto (1924-2005) integrou uma geração de cineastas japoneses que experimentaram em primeira mão os pavores da Segunda Guerra Mundial — a esse grupo, pertencem também outros nomes brilhantes, como Masaki Kobayashi, Kenji Misumi e Seijun Suzuki. Em 1943, quando Okamoto estudava na Universidade Meiji, o exército imperial fez um vasto recrutamento de jovens universitários, que foram então enviados para lutar no Sul do Pacífico durante o período mais acirrado do conflito com os EUA. Okamoto testemunhou a morte da maioria dos companheiros e sobreviveu “por milagre” — como ele próprio diria décadas mais tarde, numa entrevista a Peter B. High. Terminado o conflito, voltou ao Japão, onde passou a trabalhar para os estúdios Toho. Admirador de John Ford, instilou elementos do faroeste americano nas mais de trinta obras que dirigiu — em gêneros tão distintos quanto a sátira, o filme de guerra e, claro, o chambara [*]­­. Se a ressonância do mestre Ford aparece no ritmo de certas composições ­— por exemplo, no contraste entre a minúcia do rosto e a vastidão da paisagem —, Okamoto também se aproxima, por suas temáticas e inspirações, ao coveterano Samuel Fuller, diretor de Agonia e Glória (The Big Red One – 1980). Na obra de ambos os cineastas, que lutaram em lados opostos no mesmo conflito, encontramos o eterno retorno da violência vivida, como fluxo subterrâneo da violência representada.

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Kihachi Okamoto

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Okamoto realizou diversos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, como Desperado Outpost (1959) e Bala Humana (1968), mas sua experiência no campo de batalha também informa as obras que dirigiu no âmbito de outros gêneros — como é o caso dos filmes tratados neste ensaio. Tanto Samurai Assassino (?, “Samurai”) quanto A Espada da Maldição (????, “Dai-bosatsu Toge”) se passam em 1860, durante o turbilhão político que derrubou o xogunato e precedeu a Restauração Meiji. Para se captar o espírito desses filmes, portanto, é preciso lembrar que ambos se desenrolam num mundo à beira da desintegração­ — e, em grande medida, tratam do esforço humano em perscrutar alguma profundeza de sentido na superfície do caos. Não por acaso, são filmes calcados em elementos que se pulverizam, se rasgam ou se desvanecem: paredes de papel esgarçadas, torvelinhos de nevasca, neblinas que sobem e descem feito a maré, uma lâmina que golpeia um raio de sol.

Niiro, com efeito, possui os talentos necessários para cumprir a barganha injusta. Seus dotes como espadachim, a princípio, parecem suficientes para cortar o nó górdio de seu destino. Bastaria dominar a arte da espada para ascender ao lugar que lhe é de direito. Novamente, contudo, o curso dos eventos frustra seu avanço. Niiro se apaixona, precocemente, por uma mulher da alta aristocracia e é obrigado a vê-la casar-se com outro homem. O nó, em vez de se romper, aperta-o ainda mais. Enfurecido contra seu quinhão, Niiro se transforma numa espécie de leão de chácara, abrutalha-se e assume um traço autodestrutivo que passa a contaminar tudo ao seu redor.

Há um espelhamento fascinante entre Niiro e o personagem interpretado por Mifune em outro clássico do gênero ­— Yojimbo (1961), de Kurosawa. Pois o protagonista de Samurai Assassino também é, precisamente, um yojimbo, ou guarda-costas mercenário. No filme de Kurosawa, contudo, o personagem de Mifune é fascinante por não ter um passado: seu destino vai se escrevendo à medida que avança de estrada em estrada e de aventura em aventura. Já na obra de Okamoto, o anti-herói de Mifune é esmagado, inversamente, por um excesso de passado, um passado sobre o qual não tem responsabilidade direta, mas que há de determinar o malogro de seu futuro.

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Samurai Assassino (Reprodução)

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Numa última tentativa de escapar a essa armadilha-labirinto, montada no instante mesmo de sua concepção, Niiro se une a um grupo de conspiradores que planejam assassinar Ii Naosuke, um alto ministro do xogum. O atentado, se bem-sucedido, terá o condão de arrasar a velha ordem das coisas. Niiro não têm preferências políticas, mas acaba se convencendo de que seu destino na Terra é matar aquele homem, e, com isso, tornar-se um herói no mundo novo que está por nascer.

O assassinato de Ii Naosuke é fato histórico, ocorrido em 24 de março de 1860 perante os portões do Castelo de Edo, e conhecido como o Incidente de Sakuradamon. Esse é o coração secreto do filme, o acontecimento central a que convergem todas suas linhas dispersas. O Incidente é recriado por Okamoto em um momento de excelência cinemática: uma das maiores cenas de ação já filmadas em qualquer época. O atentado ocorre sob uma nevasca que abafa os sons e quase oblitera a visão ­ ­— uma espécie de pesadelo branco, uma coreografia de morte que parece uma espécie de êxtase invertido. Niiro avança em meio à neve e aos corpos dos inimigos, que pouco a pouco se confundem, em direção ao alvo e à consumação do destino. Não falei em Sófocles? Não falei em Medeia? Pois bem: momentos antes do atentado, descobrimos que Ii Naosuke é pai de Niiro. O personagem de Mifune, contudo, ignora até o último instante a resolução do mistério e, como Édipo, mata o próprio pai sem saber. A gargalhada de um moribundo, que rola na neve ensanguentada, parece ecoar a hilaridade de algum deus insano. No fim, tudo faz sentido, e o sentido é terrível: um homem essencialmente bom tornou-se um parricida por engano. Seria melhor não haver sentido algum?

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Samurai Assassino (Reprodução)

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Agora, vamos à Espada da Maldição, cujo título japonês é Daibosatsu toge, “O Passo do Grande Bodisatva”. Quando Okamoto dirigiu esse filme em 1966, tanto o enredo quanto o protagonista já eram minuciosamente conhecidos pelo público. Criação de Kaizan Nakazato (1885—1944), o espadachim niilista Ryonosuke Tsukue tornara-se imensamente popular em uma série de quarenta e um volumes, publicados no Japão a partir de 1913. O primeiro tomo da epopeia já fora adaptado ao cinema por Hiroshi Inagaki, Kunio Watanabe e Kenji Misumi. Como a audiência já conhecia a história, Okamoto não se preocupa em criar uma narrativa encadeada e nítida, preferindo montar uma sucessão de cenas exemplares que, aos olhos ocidentais, podem parecer mal e mal conectadas entre si. É como se alguém resolvesse adaptar Crime e Castigo saltando entre episódios célebres e fixando imagens impressionantes, sem explicá-las. A atmosfera algo desconexa e incompleta do filme acaba intensificando o efeito de absurdo existencial que o torna inesquecível.

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A Espada da Maldição (Reprodução)

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Interpretado por Tatsuya Nakadai — num dos momentos mais altos de sua altíssima carreira —, Ryonosuke é um personagem tão perverso que seu próprio pai implora que alguém o mate. Logo à primeira cena, vemos o protagonista assassinar de forma arbitrária um velho andarilho indefeso, que rezava no santuário de um Bodisatva (daí o título japonês). Não há sentido algum nessa morte, e o mesmo mecanismo aparentemente aleatório repete-se durante o resto do filme: Ryonosuke comete atrocidades sem qualquer motivo perceptível e, na verdade, ele mesmo parece ignorar o motor de suas ações. Após cada assassinato, nós o vemos atirado num canto, com um olhar fixo no vazio e uma expressão que mescla incompreensão, êxtase e espanto. Nakadai trabalhou com um batalhão de gênios, mas nenhum diretor superou Okamoto nessa façanha específica: transformar o olhar hipnótico do ator em uma espécie de maravilha tautológica, uma fuga abismal que parece engolir a própria obra a que pertence.

Ryonosuke é um vilão estranhamente passivo, cujas ações parecem controladas por forças além da compreensão humana: sejam elas as leis do karma ou o simples influxo do absurdo na existência humana. Até sua postura em batalha é filosoficamente ambígua. Ryonosuke é invencível porque age como uma sombra: quando o atacam, ele recua; quando o golpeiam, ele se esquiva; o golpe letal surge de forma aparentemente espontânea, como se não fosse produto da vontade humana, mas de um encadeamento de causas e efeitos cuja origem está sempre fora de vista.

O desfecho de A Espada da Maldição é uma mistura de dança da morte, enigma visual e símile do apocalipse. Num espaço cercado por paredes de papel, Ryonosuke começa a escutar as vozes de suas vítimas e é cercado por sombras que podem ser reais ou imaginárias. A batalha que se segue é ao mesmo tempo chocante e abstrata, oniricamente metafórica e brutalmente carnal. Décadas mais tarde, numa entrevista a Simon Abrams, Nakadai diria que a filmagem daquela única cena levou três dias e o levou a golpear setenta pessoas ­­— uma experiência tão extrema que ele próprio sentiu que estava ficando louco. Nota-se, aliás: em minha opinião, nada no cinema universal transmite a loucura e o mistério da violência humana como os últimos minutos de A Espada da Maldição, em que o personagem de Nakadai avança por um interminável labirinto de papel, rasgando paredes que se sucedem como espelhos ocos, desgrenhando-se, revertendo quase a uma condição pré-lógica, pré-humana — e tudo isso composto num rigor formal que extasia os olhos ao mesmo tempo em que os horroriza.

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A Espada da Maldição (Reprodução)

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O filme culmina numa freeze-frame que mostra Ryonosuke prestes a desferir um próximo ­­— e jamais consumado — golpe. A Espada da Maldição foi projetado como o primeiro título em uma série, porém os episódios seguintes jamais foram produzidos: o rosto congelado de Nakadai ao mesmo tempo encerra e desencerra o filme. Pelo que sabemos, aquele combate alucinante em recintos concêntricos cujas paredes se rompem e se multiplicam pode se prolongar ao infinito, ou até o momento em que um sentido se revele — ainda que o sentido final seja a aniquilação.

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Nota:

[*] Para a definição de chambara, ver o primeiro ensaio da série.

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José Francisco Botelho

José Francisco Botelho é autor de Cavalos de Cronos (Zouk, 2018), grande vencedor do prêmio Açorianos em 2019.