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A demência presidencial e a Constituição – no Brasil e nos EUA

por Cássio Casagrande

(Foto: Dida Sampaio/Estadão)

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Já por duas vezes a conceituada revista liberal The Economist fez alusões nada sutis às condições psíquicas de Jair Bolsonaro. Na edição de 26 de março, em tom jocoso, chamou o presidente brasileiro de “BolsoNero”, uma menção ao desvairado imperador romano. Na edição de 11 de abril, afirmou que muitos políticos em Brasília o tratam “como um parente difícil que mostra sinais de insanidade”. Na prestigiosa revista americana Salon, David Nemer comparou-o em abril ao funesto reverendo Jim Jones, que, em 1978, arrastou para o suicídio centenas de seguidores fanáticos na Guiana.

Não sou psicólogo ou psiquiatra, mas confesso que também tenho sérias dúvidas sobre o estado mental do presidente. Uma pessoa que constantemente faz escolhas irracionais e ilógicas, mente compulsivamente, nega a realidade, desdiz o que disse no dia anterior, vomita um palavrório desconexo e agressivo, descontrola-se com frequência em público, descura de empatia mínima pelos seus semelhantes e cultua a morte violenta parece-me padecer de alguma forma de distúrbio, não sei exatamente qual a sua taxonomia e o seu grau de perigo. E nem sequer quero adentrar aqui em especulações quanto a alguns de seus esgares assustadores, crispações faciais disformes e gargalhadas sádicas.

Não posso, tampouco, afirmar se tal estado atípico é ou não incapacitante para o trabalho, ou se se restringe meramente a um problema ou fardo para a família, e imagino que estabelecer semelhante diagnóstico seja difícil até mesmo para os profissionais mais gabaritados da Medicina Legal, mas a cautela recomendaria ao menos submetê-lo a uma junta médica oficial, como ocorre com os demais servidores públicos em situações que tais.

(Foto: Dida Sampaio/Estadão)

Por vezes, se a perturbação da inteligência é diagnosticada a destempo, as consequências podem ser desesperadoramente infaustas. Não sei se os leitores recordam, mas há coisa de uns anos atrás, um piloto alemão da companhia aérea Germanwings decidiu se suicidar em pleno vôo, e neste ímpeto delirante, cruel e assassino, pura e simplesmente mergulhou o nariz da aeronave até espatifá-la em uma belíssima e gelada montanha dos Alpes franceses, levando consigo uma centena e meia de passageiros, sendo uma boa parte destes jovens na flor da idade que partiam para uma animada excursão colegial ao mar tépido da Andaluzia.

O fato é que esse piloto alemão, antes do malsinado, triste e fatal episódio, se comportava de forma errática e incongruente, e chegara mesmo a se submeter ao serviço médico da companhia, que lhe conferiu generosamente algumas licenças e aconselhamentos, sem, contudo, afastá-lo por completo do trabalho, o que, salvo melhor juízo, teria poupado a vida de tantos inocentes. Vejam, portanto, a importância que um bom e acertado diagnóstico psicológico pode ter para evitar tragédias terríveis que tais.

A questão é que semelhantes morbidades podem acometer a qualquer um de nós ou mesmo nos estarem pespegadas desde a nascença, pelo acaso da genética. Fato sabido e consabido é que incidem indistintamente sobre a população, não poupam o rico ou o pobre, o poderoso ou o proletário. Exatamente por isso, tomamos nota nas lições de História dos variados monarcas europeus e papas da Igreja que foram classificados em uma das variantes dos “loucos de todos os gêneros”, para lembrar a clássica e algo divertida definição do nosso falecido Código Civil de 1916. O problema, pois, ocorre quando chefes de Estado caem em irrecuperável desvario e querem levar consigo, na sua insanidade, toda uma população inocente que está em suas mãos, como aquele atormentado piloto alemão.

No Brasil, em particular, guardamos farta jurisprudência na matéria, desde que para cá se trasladou a corte bragantina, trazendo a bordo a Senhora Rainha Dona Maria, dita justamente “A Louca”, impedida de governar pelos sábios de então em favor do cônscio Príncipe Regente D. João VI.

Maria I de Portugal

E o seu primogênito, nosso heroico D. Pedro I, vamos ser francos, parecia padecer de desatinos que extrapolavam a mera explosão raivosa, os quais culminavam em conhecidas e tristes agressões à mui leal Imperatriz Leopoldina. Isso para não cuidar de suas compulsões sexuais, que poderiam credenciá-lo ao diagnóstico de um maníaco obsessivo. Dizem que deixou espalhada em todo o Rio de Janeiro larga prole, cujos descendentes andam por aí sem se dar conta de sua nobre e imperial origem.  Legou-nos um filho reconhecido e honrado para nos governar por longos anos, homem no entanto infeliz que, ao que tudo indica, sofria de certa depressão por não apreciar o trabalho que o destino lhe impôs.

Passado o Império aos alfarrábios empoeirados da História, a República nos proporcionou outros governantes com problemas psíquicos. Já no seu albor, diante do falecimento inesperado de Afonso Pena em 1919, a presidência cai ao colo de Delfim Moreira, que era tido e havido por muitos contemporâneos como doido de pedra. Diante do passamento do presidente Pena, um repórter da Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro se deslocou para a cidade natal do vice-presidente em Minas Gerais, e lhe formulou uma franca pergunta sobre a delicada questão, seguindo-se então o diálogo que aqui reproduzo: “Lá no Rio tem se dado curso a boatos malévolos com relação à sua pessoa, e resolvemos vir aqui tentar qualquer declaração de V. Ex. no sentido de desfazê-los”; “Não vale a pena”, respondeu o político mineiro, prosseguindo: “A imprensa não deveria aceitar essas coisas. Ora – dizem que estou louco. Veja o senhor que absurdo! Não há na minha família nenhum louco!

Uma vez no cargo, demonstrou-se parcialmente procedente o boato de possuir Delfim Moreira algum distúrbio mental, pois não raro lhe acometiam surtos psicóticos, durante os quais se desligava completamente da realidade, sendo o poder exercido de fato pelo Ministro Afrânio de Melo Franco. Como apenas cumpria um mandato tampão (já que novas eleições foram convocadas na forma do art. 42 da Constituição de 1891), não houve grande prejuízo à República.

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Delfim Moreira

Decaída a República Velha, assume Getúlio Vargas, personagem controverso e dominante nas décadas de 30 a 50 que, como vários biógrafos autorizados reconhecem, tinha em sua cabeça a pulsão doentia e trágica do suicídio desde jovem, e essa era também a abalizada opinião do dramaturgo Nelson Rodrigues. Os acontecimentos de 24 de agosto de 1954 no Catete só o confirmam.

Jânio Quadros, eleito para o mandato 1961-1965, foi certamente o mais desequilibrado e perturbado dos presidentes (até 2018, ao menos), tendo um pendor para o alcoolismo que certamente lhe acentuava a loucura. É provável que a decisão de renunciar precocemente no intuito de promover um golpe autoritário foi ideia acalentada por libações de uísque barato.

O período militar atravessamos sem loucos, os presidentes se limitavam a ser ditadores, o que ao final não fez muita diferença para os governados sob o insano regime. João Figueiredo destoava da frieza dos demais generais presidentes, pois era dado a rompantes explosivos, como D. Pedro I, ao mesmo tempo em que também parecia um infeliz deprimido com seu trabalho, tal como já ocorrera a D. Pedro II, possivelmente a razão pela qual declarou preferir o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo.

Na Nova República (que ao que tudo indica acabou de acabar) tivemos relativa sorte, pois ao menos Sarney, Itamar, FHC, Lula e Dilma aparentavam minimamente estar no controle pleno de suas capacidades cerebrais. Collor, que perdia a têmpera com facilidade, é um caso limítrofe ainda a ser estudado com mais vagar e cautela, pois parecia então tipificar um mero quadro de adolescência tardia.

Os americanos também tiveram a sua cota nada modesta de presidentes “problemáticos”, vamos por assim dizer. Segundo um estudo da Universidade Duke, metade dos presidentes dos EUA enfrentou alguma espécie de doença mental em algum momento da sua vida.  James Madison, John Quincy Adams, Franklin Pierce, Abraham Lincoln e Calvin Coolidge sofriam de depressão. Pierce também padecia de alcoolismo severo e morreu vitimado de cirrose aguda. Thomas Jefferson e Ulysses Grant tinham transtornos de ansiedade. Theodore Roosevelt e Lyndon Johnson teriam sido bipolares. Nenhum desses distúrbios pareceu grave a ponto de prejudicar o serviço e, em alguns casos como os de Jefferson, Madison e Lincoln, certamente pode-se até dizer que “de gênio e de louco todos tinham um pouco”.

Outros presidentes aparentavam moléstias psíquicas mais leves. Kennedy, segundo os seus biógrafos mais indiscretos, era viciado em sexo a ponto de parecer um D. Pedro I reencarnado. Nixon, de acordo com as más línguas, também sofria de um drinking problem e muitos o tinham por completo neurótico, o que teria contribuído para suas decisões desastradas no caso Watergate.  Reagan, disse-o o próprio filho, apresentou as primeiras manifestações de Alzheimer durante a parte final do segundo mandato.

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Reagan deixando o hospital em 1981 (Wikimedia Commons)

Depois desta introdução histórica talvez excessivamente longa mas necessária, chegamos ao ponto que interessa ao Direito Constitucional, em matéria curial que trata da responsabilidade política dos chefes de Estado: quais são os mecanismos jurídicos aplicáveis caso o Presidente da República demonstre ter perdido por completo ou parcialmente a administração de suas faculdades mentais, agindo no exercício do cargo de forma abestalhada?

A resposta, para o direito constitucional brasileiro, é penosa e lamentável: não há resposta. Nenhuma de nossas Constituições previu a hipótese, talvez porque os constituintes a consideraram improvável ou esdrúxula. Afinal, ninguém elegeria um louco para a presidência, embora se devesse ponderar que a loucura nem sempre é de nascença, podendo ser adventícia, intercorrente ou incidental. Ou, talvez, não se tenha cogitado que a própria maioria do eleitorado, num transe coletivo irracional, viesse a sufragar um completo desmiolado para a cadeira presidencial – hipótese de fato cerebrina… ou nem tanto, ao que parece.

Fato é que se o presidente perde o juízo ou mesmo dele é desprovido desde antes da posse, não há remédio constitucional para interditá-lo e afastá-lo do cargo. Ter-se-ia que enquadrar o caso, talvez à fórceps, numa das hipóteses da Lei 1079/50, para conformar uma tipificação em alguns dos inúmeros crimes de responsabilidade ali descritos, impingindo-lhe alguma sorte de “pedalada mental”, pois é certo que o uso destrambelhado do intelecto seguramente o levaria a cometer algumas daquelas hipotéticas condutas, tamanhos o seu rol, extensão e subjetividade. Mas, evidentemente, do ponto de vista constitucional, não é uma boa solução.

A Constituição dos Estados Unidos da América incidia em semelhante omissão, mas foi corrigida, ainda que tardiamente, em 1967, com o acréscimo da Vigésima Quinta Emenda. Ela foi resultado do assassinato de John Kennedy em 1963, uma vez que após receber os tiros em Dallas, aquele presidente permaneceu moribundo por algum tempo, durante o qual houve um momentâneo vácuo de poder, pois não se sabia em que medida o vice-presidente Lyndon Johnson poderia ou não assumir todas as prerrogativas do cargo, em um momento delicadíssimo de segurança nacional.

O impasse acabou durando apenas algumas horas, mas alertou os congressistas americanos para o “silêncio” constitucional a respeito de eventual incapacidade do presidente. Na verdade, uma situação ainda mais dramática e obscura havia ocorrido ao final do segundo mandato de Woodrow Wilson (1917-1921). O vigésimo oitavo presidente dos EUA sofreu um derrame (AVC) em outubro de 1919, quando lhe restava pouco mais de um ano de mandato. Segundo informações médicas reveladas posteriormente, ele ficou com metade do corpo paralisado, mas até hoje não está claro até que ponto suas funções cerebrais foram danificadas.  Sua mulher Edith Bolling manteve-o longe dos olhos do público e da imprensa.  Woodrow recusou-se a renunciar e permaneceu recluso em seus aposentos. Há vários historiadores que acreditam que os EUA foram governados, de fato, por sua esposa no período final do segundo termo presidencial.

Woodrow Wilson e a esposa, Edith Bolling Galt Wilson

A Vigésima Quinta Emenda à Constituição resolveu esse problema. Ela permite que o vice-presidente, ao constatar a incapacidade do presidente, emita declaração nesse sentido assinada por pelos menos outros oito Secretários de Estado (Ministros) e a encaminhe à Câmara dos Representantes e ao Senado.  Caso o Presidente da República discorde dessa manifestação de seu Vice-presidente, ele dispõe da prerrogativa de recorrer ao Congresso, que somente poderá afastá-lo definitivamente por maioria de dois terços em cada uma das casas.

Desde sua edição, a Vigésima Quinta Emenda nunca foi usada. Membros do gabinete de Ronald Reagan chegaram a discutir seu eventual cabimento quando, no período final de seu segundo mandato, a partir de 1986, o veterano ator e político começou a dar mostras evidentes de falhas de raciocínio e perda de memória (embora ainda não soubessem que, possivelmente, eram os primeiros sintomas do mal de Alzheimer). E, segundo conta o jornalista Bob Woodward no recente Medo: Trump na Casa Branca, o assunto teria sido ventilado entre altos assessores do governo do atual presidente já no primeiro ano de seu mandato, quando ele manifestou comportamentos explosivos e incoerentes.

Diante da história brasileira, inclusive a contemporânea, não seria má ideia se os congressistas aprovassem uma versão brasileira da Vigésima Quinta Emenda à Constituição dos EUA, pois os cidadãos de uma República não podem ser passageiros de um piloto enlouquecido.

(Foto: Stacie Scott/AP)

Cássio Casagrande

Cássio Casagrande é Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da UFF, Procurador do MPT no Rio de Janeiro e colunista do JOTA.