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“É inútil resistir?” – Para uma genealogia das resistências no Brasil

por Aline Passos Idelber Avelar

Este é um verbete escrito a quatro mãos inserido no contexto de um projeto mantido por um de nós na internet sob a rubrica de cemitério das palavras, que consiste em fazer a crônica periódica do óbito de certos vocábulos, por abandono ou sobreuso, conforme o caso. Sem tomar nenhum desses discursos como puros reflexos de um real preexistente, o mapeamento registra a evolução dos usos de certas palavras no jornalismo, no sistema político, nas redes sociais e em outros espaços da esfera pública. O projeto se inicia com a observação do paulatino abandono em que caem os termos latifundiário e latifúndio, substituídos principalmente por ruralista e propriedade rural em todos os dialetos do português falado no Brasil. Bem mapeável em jornais e discursos políticos ao longo das décadas de 1990 e 2000, o declínio de latifúndio não é, a priori, o resultado do desaparecimento de seu referente. Como se sabe, o Brasil continua sem realizar uma reforma agrária nos moldes da que se fez no México já no começo do século XX, que pelo menos mitigasse a concentração altíssima de posse da terra. Latifundiário é um caso em que a palavra vai desaparecendo sem que seu referente mude substancialmente — ele apenas passa agora a ser designado por outro termo, ruralista, que apaga origens de classe e cria um leque mais amplo de identificações. No terreno do sobreuso, oposto ao que sofre latifúndio, estão os termos golpe e fascismo, aos quais recorreram intensamente amplos setores da esquerda brasileira nos últimos anos.

Do latim tardio resistentia, surgido a partir da raiz nominativa do verbo resistere, o termo se incorporou às línguas europeias modernas via francês antigo resistance. No Oxford English Dictionary, o significado político de oposição organizada secreta a uma ocupação hostil estrangeira foi registrado em 1939. A palavra chegou aos nossos dias pela justaposição de sentidos que vão de manter-se de pé a enfrentar. Embora o sentido reativo esteja invariavelmente colocado pela oposição a uma força preexistente, resistir abrange dimensões ativas e passivas. Não à toa, na década de 1940, o Código Penal brasileiro tipificou essas duas dimensões, a primeira no artigo 329, como resistência propriamente dita, e a segunda no artigo 330, sob o título de desobediência. O que parece constante a respeito da resistência é que a força que a antecede é sempre uma autoridade, ou ainda, é a lei, seja da gravidade ou a que aparece corporificada na figura de um policial. Falar de resistência, portanto, é falar de duas forças antagônicas e inconciliáveis. Talvez por isso, na história, quando a resistência se confunde com a lei, uma delas tende a sucumbir: problema fundamental apontado por Gilles Deleuze em relação aos governos de esquerda.

Resistência migrou do vocabulário da esquerda armada dos anos 1970 (de montoneros argentinos a tupamaros uruguaios à miríade de siglas que se proliferam no Brasil a partir dos rachas do PCB) e foi ressignificado na academia politizada através dos estudos culturais nos Estados Unidos dos anos 1980. Nos estudos literários e culturais, resistência passou a ser um instrumento de validação estética ou cultural de certas práticas e também critério de desqualificação de outras, quando nestas se percebia a dimensão de resistência política ausente ou sabotada. Nos vários marxismos, nas evocações à carnavalização bakhtiniana e até mesmo em estudos inspirados em Michel Foucault (que guardava conhecida reserva ante a palavra), a resistência tornou-se um mantra e um paradigma legitimador de discursos. Não foi à toa que algumas das principais obras escritas sobre os movimentos de esquerda dos anos 1970 recuperaram a palavra resistência em algum binômio: resistência e integração, como no estudo de Daniel James sobre o peronismo; resistência e medo [1], nos vários artigos da clássica coletânea Fear at the edge [2], sobre os regimes autoritários do Cone Sul; cultura e resistência, em muitos estudos que vão desde a historiografia sobre a música popular de Marcos Napolitano [3]até os ensaios sobre cultura e poder de figuras como Marilena Chauí [4]ou Renato Ortiz [5].

O ethos que marca positivamente o termo resistência ascendeu ao Planalto em 2003, e o lulismo não se furtou a usar o termo como mote mesmo enquanto governava. Do elogio da Tropicália como resistência política no discurso feito no Barbican Center de Londres, em março de 2006, ao louvor à “capacidade de resistência e de sobrevivência da empresa brasileira,” no discurso proferido no Rio de Janeiro em 12 de maio de 2008, Lula nomeou, com certa frequência, o sujeito de uma resistência como exemplo positivo. A palavra aparecia mesmo em situações nas quais o sujeito nomeado era “a empresa nacional,” que como sabemos foi metonímia lulista para um conjunto bem finito de oligopólios entendidos como campeões nacionais. Ao mesmo tempo em que mobilizou referências históricas à palavra resistência, o lulismo também agenciou, enquanto governo, uma série de dispositivos de exceção, dos quais se pode destacar a lei antidrogas, por seu efeito na produção de um encarceramento massivo e intervenções militares sobre favelas.

Não por acaso, nestes espaços, autos de resistência ou resistência seguida de morte designam, além e aquém dos procedimentos jurídicos, uma situação de letalidade policial. Dito de outra forma, elas indicam que uma pessoa foi morta por um policial em serviço. Neste sentido, a palavra resistência se refere à conduta de alguém que confrontou a atuação de um agente de Estado. Embora a retórica do “conflito” ou “confronto” não raro sirva para esconder práticas de execução sumária, resistênciapossui uma dimensão ativa atribuída a quem morreu. No texto original do pacote anticrime do ministro Sérgio Moro, uma alteração no artigo 329 do Código Penal pretende inverter o sentido jurídico, mas também histórico-político, da palavra resistência. Trata-se da inserção de uma qualificadora–circunstância que aumenta os patamares mínimo e máximo de pena–que transforma a “resistência seguida de morte” numa situação em que o morto é o agente policial que estava em serviço. O redimensionamento da “resistência” no pacote anticrime é fatal. Ele opera pela inversão dos pólos autor/vítima, vida/morte e violência legítima/crime. Enquanto a “resistência seguida de morte”, como nós a conhecemos, implica na absolvição de uma autoridade que mata de forma supostamente legítima, o que Sérgio Moro propõe é que a expressão passe a designar o caráter criminoso de quem mata uma autoridade, ainda que de forma acidental. [6] Em outras palavras, quem resiste à autoridade morre porque é indigno de vida, mas caso sobreviva, é indigno de liberdade.

No entanto, se há uma coisa da qual o ministro não pode ser acusado é de originalidade. O Estado Democrático de Direito também pode ser lido como uma história de cerco às resistências. Esta, no entanto, é uma história menor, uma história que a História não conta e o Direito sepulta sob a lápide da lei e da autoridade. A grande questão, assim, não é tanto como a resistência é tratada nos termos do projeto anticrime, mas como se tornou possível desenhar o cerco em termos jurídicos, se a sua condição de possibilidade era precisamente não assumir uma forma jurídica para transitar pela exceção. As alterações previstas no projeto informam explicitamente que o destino da resistência é a morte ou a prisão, algo que, se por um lado, já era amplamente conhecido por imensas parcelas da população, por outro não podia ser dito, muito menos legislado, pois havia um custo político ao fazê-lo. Como esse custo desapareceu é uma história ainda a ser contada, mas existem pistas significativas de que ela passa pela desidratação do sentido ativo da resistência no exato momento em que se pretendeu confundi-la com governo. Em outras palavras, o autoritarismo de Sergio Moro precisa ser encarado não como a emergência de uma aberração, mas por meio de uma genealogia do enfraquecimento da resistência ao ponto de fazer quase desaparecer o custo político de o Direito assumi-la enquanto seu grande inimigo.

Aline Passos é doutoranda em sociologia pela Universidade Federal de Sergipe, abolicionista e flamenguista.

Idelber Avelar é ensaísta e professor de estudos latino-americanos em Tulane University, Nova Orleans. Escreve sobre literatura, política e o Galo.

[1]    James, Daniel. Resistance and Integration: Peronism and the Argentine Working Class, 1946-1976. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

[2]    Corradi, Juan E.; Fagen, Patricia W.; Garretón, Manuel A. (editores).Fear at the Edge: State Terror and Resistance in Latin America. Berkeley: U. of California P., 1992.

[3]    Napolitano, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume, 2001.

[4]    Chauí, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas.São Paulo: Cortez, 1989.

[5]    Ortiz, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional.São Paulo: Brasiliense, 1985.

[6]    Passos, Aline; Rodrigues, Carls (orgs). “Pacote de Tróia: a lei anticrime de Moro” (dossiê). Revista Cult 244 (2019):  20-39.