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Estado do Cinema: Entrevista com Luís Miguel Oliveira

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Em setembro do ano passado, a entrevista que fizemos com o crítico australiano Adrian Martin inaugurou o Estado do Cinema, espaço interno da seção de cinema do Estado da Arte dedicado à publicação de entrevistas com alguns dos principais nomes do cenário cinematográfico mundial. Hoje, disponibilizamos para os leitores a conversa que tivemos com Luís Miguel Oliveira, crítico português de extensa atividade profissional e uma das vozes mais fascinantes da produção crítica internacional.

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Cinematecas

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Como é a experiência de ser programador da Cinemateca Portuguesa?

É uma experiência central na minha vida profissional, mas não tenho verdadeiramente termos de comparação com a vida de programador noutras cinematecas. É um privilégio, evidentemente, até pela História da Cinemateca Portuguesa, e pelas pessoas que lá trabalharam abrindo um caminho, como pioneiros, para que a instituição tenha a solidez e o reconhecimento que tem hoje.  Depois, ao nível da experiência pessoal, creio que é como tudo na vida: cíclico. Bons momentos, maus momentos, períodos de entusiasmo, períodos de frustração. Não sei responder melhor a esta pergunta, ser programador da Cinemateca Portuguesa confunde-se demasiado com a minha vida, “tout court”…

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Como você descreveria a situação atual dessa instituição?

Sólida, tanto ao nível das infraestruturas que ao longo dos anos foram sendo criadas, como do trabalho que a partir daí é possível apresentar e contribui para que a Cinemateca esteja implantada na sociedade portuguesa como um lugar valioso e prestigiante. Claro que há dificuldades a vários níveis, eventualmente até ameaças (as mesmas que, de um modo geral, se põem a qualquer cinemateca do mundo), há sempre incertezas no horizonte, e como a Cinemateca não está desligada da sociedade em que se insere, também sofre com os momentos de crise — os anos da “troika”, no princípio da década, foram muito duros. Mas também creio que a Cinemateca está bem equipada, material e humanamente, para lidar com as dificuldades, quer as de fundo quer as conjunturais.

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Qual é a relação do povo português e das autoridades portuguesas com a Cinemateca do país?

Penso que existe respeito e reconhecimento, e de modo geral uma noção da importância do papel que a Cinemateca cumpre. Tanto da parte do público em geral como da parte do poder.

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De que maneira você enxerga o que tem acontecido recentemente com a Cinemateca Brasileira?

Com muita pena. Independentemente das particularidades do caso, é ainda mais dramático por se inserir num quadro de guerra à memória e ao conhecimento, e de apologia da ignorância.

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O que a Cinemateca Brasileira pode aprender com a Cinemateca Portuguesa?

Não tenho a pretensão de ensinar ou dar conselhos aos colegas da Cinemateca Brasileira. Mas as autoridades que tutelam a Cinemateca Brasileira e que presidem o seu desmantelamento poderiam, certamente, aprender alguma coisa, com a Portuguesa e com outras, caso o Brasil tivesse actualmente um governo interessado na simples ideia de aprendizagem.

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Crítica de Cinema

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Quais foram os primeiros contatos que você teve com a crítica de cinema?

Pelos jornais que o meu pai e o meu avô compravam. Como sempre fui viciado em jornais, com oito ou nove anos lia-os de uma ponta à outra, incluindo as secções de cinema. Habituei-me a consultar os “quadros de estrelas” muito antes de começar a ir ao cinema de moto próprio e com regularidade, e por essa tenra idade já conhecia os nomes dos críticos portugueses… sem imaginar, claro, que alguns anos mais tarde alguns deles viriam a ser meus colegas. Mais tarde, quando o cinema me começou a interessar realmente, comecei a lê-los de outro modo. Mas o contacto inicial foi sobretudo com os críticos dos jornais portugueses, porque nunca houve em Portugal, pelo menos no meu tempo, experiências duradouras de imprensa especializada de cinema. Os críticos mais importantes estavam nos jornais generalistas. E também era — falo dos anos 80 — uma época feliz para a imprensa, havia muitos jornais e muita diversidade.

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O que fez você querer se tornar crítico de cinema? E quando isso ocorreu?

Não sei precisar o momento certo. Terá sido quando compreendi que escrever sobre cinema era uma coisa que me satisfazia e me entusiasmava, e às vezes até me preenchia. E quando percebi que o cinema me interessava a partir da posição de espectador — nunca pensei seriamente em fazer filmes, e sempre pensei na actividade crítica como um fim em si, não como um meio para chegar a outro lado. Creio que quando entrei para a faculdade já estava convencido de que o meu destino seria andar por esta órbita, tornar-me um “espectador profissional de cinema”, o que de certa forma se cumpriu, na crítica e na Cinemateca.

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Quais foram os críticos que mais te influenciaram? E por quais razões?

Muitos, demasiados para para me pôr a debitar nomes sem correr o risco de esquecer algum. É evidente que a descoberta da crítica estrangeira e sobretudo da história da crítica estrangeira — nomeadamente da tradição francesa, e em particular dos “Cahiers” — foi um momento marcante: passei tardes na biblioteca da Cinemateca, anos antes de lá trabalhar, a ler velhos números dos “Cahiers” de enfiada. A minha “escola” foi essa, francesa e “cahierista”, algo que hoje — quando as gerações mais novas são incapazes de ler francês e encontram as suas influências na proeminência anglo-saxónica da internet — é visto como um sinal suspeito, mas je m’en fous. Mas queria voltar a frisar a importância dos críticos portugueses na minha formação. Porque foram os primeiros que li regularmente (e vários deles ainda estão em actividade), e aprendi a apreciar as diferenças entre eles e os diversos ângulos de abordagem, e aprendi, sobretudo, que no espaço que fazia com que o mesmo filme pudesse ser aclamado por uns como uma obra prima e por outros como um pedaço de lixo residia toda a liberdade do espectador de cinema. Depois havia também as “folhas” da Cinemateca, que embora num contexto diferente para mim fizeram parte de um mesmo processo de descoberta da crítica de cinema — e aí, o destaque dado a um enfoque histórico, muitas vezes mais importante do que a simples posição pessoal perante um filme, também me marcou bastante. É diferente escrever uma “folha” de outra época e uma crítica sobre um filme acabado de estrear, mas mesmo neste último caso é importante tentar inserir o filme numa relação com a História (e não falo apenas da “História do Cinema”), e isso aprendi com a leitura das “folhas”.

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O que você busca ao ler um crítico de cinema?

À cabeça, e muito genericamente, um olhar exterior ao meu, o relato do encontro de uma personalidade diferente da minha com um mesmo objecto. Depois, e mais especificamente, um casamento entre argúcia e conhecimento, a capacidade de imbrincar esses dois termos. Justeza, em suma: um crítico de cinema tem que perceber o filme, mas também tem que perceber o tempo do filme (seja esse tempo o nosso ou um tempo remoto). Hoje fazem muito sucesso as análises retrospectivas em que o crítico (e muitas vezes nem são críticos) mais não faz do que declarar a sua superioridade moral sobre o objecto em questão — e sobre as pessoas que o fizeram, e sobre o tempo em que foi feito. Acho isso absolutamente desprezível, para não dizer mesmo obsceno: a “sensibilidade contemporânea” transformada em bulldozer, a arrasar tudo à sua passagem. Gosto de um crítico que estuda o modo como um filme é habitado pelo seu tempo, ou como um filme habitou o seu tempo e revelou alguma coisa sobre ele. Como um “objet trouvé”, “matter of fact”, que suspende a moralidade do dia, da mesma forma que um arqueólogo perante umas ruinas se interessa por elas — na sua materialidade e na dinâmica entre a materialidade e o “significado” – muito para além de um juízo sumário e condenatório sobre o pensamento (social ou individual) que lhes subjaz. Nos últimos anos, gostei muito de ler os livros do Hoberman sobre o cinema americano de dois períodos politicamente muito marcados por ideias extremamente conservadoras ou mesmo “reaccionárias” (os anos 40/50 da paranóia anti-comunista e os anos 80 do reaganismo) porque a atitude dele é exactamente a do arqueólogo que atira o moralismo sumário para o último lugar na lista de prioridades.

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Como você definiria o teu estilo? E como ele foi se desenvolvendo ao longo dos anos?

Não sei se sei responder… Outros que definam o meu estilo, se considerarem que há um “estilo” e virem interesse em defini-lo… O que posso dizer, conscientemente, é que prefiro a sobriedade à exuberância, sem prejuízo de, ocasionalmente, me deixar levar pelo delírio expressivo. Procuro justeza; procuro sentir que o que escrevi sobre um filme, mais do que inteligente ou bonito, é justo — nas ideias, nas palavras, e no tom. É difícil e nem sempre se consegue. Procuro não imitar, não escrever “à”, sem prejuízo de ocasionais vénias ou piscadelas de olho. Porque para se escrever “à Louis Skorecki” ou “à João Bénard da Costa” é preciso ser-se o Skorecki ou o João Bénard da Costa, e toda a imitação cai num ridículo confrangedor. Por outro lado, comecei a escrever crítica de cinema muito novo, e durante alguns anos — vejo isso agora clara e autocriticamente — escrevi como um jovem intimidado e sofredor do “síndroma do bom aluno”: preocupava-me em “acertar”, encarando cada texto como se estivesse numa prova de avaliação. Penso que a idade e a experiência me libertaram disso: pode parecer arrogante (e se calhar é), mas já não escrevo com a preocupação inconsciente de ir ao encontro do que está definido como “certo”, e pelo contrário escrevo com a noção de que o que estou a escrever é que vai contribuir — um pouco — para definir o que está “certo”. Uma pequena e muito pessoal “revolução copernicana” que penso ser a maior diferença entre o “jovem eu” de há vinte e tal anos e o “eu” mais maduro de agora.

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Como foi exercer o trabalho de crítico num ano tão atípico como 2020?

Foi… atípico. E resta esperar que não se torne típico. O streaming arrisca-se a ser, como o Serge Daney dizia da televisão, e exactamente nesse sentido, “incriticável”. É uma coisa feita para o “consumo”, tem uma dimensão “instantânea” que não convida à distância nem à reflexão — inclusive por parte do espectador: está em casa, carrega no clique, e já está; para ir ao cinema tem que fazer contas na agenda, deslocar-se a determinado sítio a determinada hora, voltar para casa… É um processo mental completamente diferente, e muito mais aberto à reflexão.

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Como você descreveria o trabalho e a importância da crítica?

Enormíssima questão para que deve haver tantas respostas quantas cabeças. Eu respondo sempre que, no mais simples, o trabalho da crítica é deixar um testemunho. Um testemunho de que este objecto existe, passou por aqui, foi visto, foi pensado. E com isso criar um pequeno, quase irrelevante, atrito no fluxo produção/consumo. A partir daqui pode, conforme as circunstâncias, ser muito mais do que isto; mas penso que, sejam lá quais forem as circunstâncias e o género de crítica (jornalística, académica, etc), o trabalho da crítica deve ser uma tentativa de compreensão, mais extensa ou mais abreviada, de um objecto. E essa é a sua importância.

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A crítica de cinema vive um momento de crise?

Sim e não. Por um lado, nunca houve tanta crítica de cinema como agora, no tempo da internet. Dá-se um pontapé numa pedra e sai de lá um site de crítica de cinema. Mas, como é uma das leis mais incontestáveis da economia, o excesso de oferta diminui o valor. Ao mesmo tempo, o descréscimo de importância (e de circulação) das publicações em papel contribui para a “horizontalidade” do panorama. Faltam “picos”, faltam curvas “verticais”. Por outras palavras, desapareceu da crítica aquilo que as referências clássicas criavam: eixos de autoridade em torno dos quais, e mesmo que por reacção, as coisas se definiam.

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Como você analisa os últimos anos e o momento atual da crítica de cinema em países conhecidos por terem tido, em algum momento da história, momentos de excelência na atividade crítica, tais como França, Estados Unidos, Inglaterra, Itália e outros?

Não conheço com a extensão suficiente para fazer uma análise aprofundada. Acho que continua a haver bons críticos em todo o lado, incluindo nesses países. Não sei se existem movimentos de fundo que permitam falar de alguma coisa com uma força colectiva, que exerça uma influência decisiva, que esboce uma “escola” de pensamento. O que em si mesmo não é mau nem é bom, é o que é.

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Como você enxerga a crítica de cinema praticada atualmente em Portugal e no Brasil?

Com bons olhos. Volto a dizer: há de tudo, mas quer em Portugal quer no Brasil há críticos talentosos e conhecedores, com vontade de fazer um trabalho obstinado, quer dizer, na primeira pessoa, à margem de tendências e do que “fica bem”, e interessados numa revisão constante da história do cinema. Devo dizer, aliás, que uma das minhas maiores supresas, graças à internet, foi a descoberta, nos anos 2000, da fortíssima cena cinéfila brasileira, que desconhecia completamente.

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Quais são as publicações e os críticos que você acompanha regularmente? E o que te leva a acompanhá-los?

Vou “picando” aqui e ali, muita coisa, mas confesso que a quantidade de oferta me deixa por vezes um pouco perdido. Tenho medo de me esquecer de alguém de que não me devesse esquecer, por isso prefiro não dizer nomes.

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Cinema

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Como se iniciou a tua relação com o cinema?

Na adolescência. Claro que ia ao cinema desde criança, e como respondi acima estava familiarizado com a crítica de cinema desde muito jovem; mas o interesse em aprofundar aconteceu na adolescência. Sou capaz de dizer o momento exacto: uma exibição do Blow Up, do Michelangelo Antonioni na televisão portuguesa (e que vi a preto e branco, porque não havia TV a cores na casa dos meus avós!). Foi a primeira vez que um filme me intrigou a ponto de pensar no trabalho do realizador: por que é que o enquadramento é assim? Por que é que corta para esta imagem e não para aquela? Todas as perguntas que fiz a mim próprio durante o visionamento daquele filme abriram uma espécie de porta por onde entrei, até hoje.

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Como se desenrolou a formação do teu repertório cinematográfico?

Num primeiro momento, e na sequência do que escrevi anteriormente, através da televisão. Havia a sorte de a TV portuguesa (pública) ter nos anos 80 uma óptima programação de cinema: lembro-me perfeitamente de ver Jean-Marie Straub, Luis Buñuel, F. W. Murnau, Nick Ray… Ia vendo tudo o que podia, passei a comprar livros de cinema. Pouco mais tarde, descobri a Cinemateca Portuguesa, onde passei muito tempo também a ver tudo o que podia. Do período de formação foram as duas entidades fundamentais; a televisão, primeiro, e a Cinemateca depois.

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O cinema vive um bom momento?

Talvez daqui a vinte anos se possa responder cabalmente a esta pergunta. Vivemos sob a pressão do “acontecimento”, há sempre demasiada poeira no ar. Talvez daqui a duas décadas venhamos a descobrir que os anos 2010 foram uma época excelente para o cinema. Mas não me parece que o momento que o cinema — tomado como entidade — atravessa seja particularmente bom. É uma época que, mesmo nos melhores casos, me parece demasiado bem comportada, com uma grande auto-consciência. Faltam os ventos anárquicos, faltam Renoirs, faltam Schroeters… Falta o alegre caos do princípio dos anos 30, do final dos anos 60… Para voltar a uma expressão que já usei: faltam os maus alunos. E como dizia Henri Langlois, o drama é que se sabe como fabricar um bom aluno, mas não há receita para se fabricar um mau aluno…

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Quais são as tendências e práticas solidificadas que você considera preponderantes no cinema contemporâneo?

Não sei se sei responder com exactidão. Sei que há valores cinematográficos que vão e vêm, parecem sair de moda e depois voltar. No cinema contemporâneo — e mesmo no melhor — noto que a composição, por exemplo, o cuidado no enquadramento, se tornou o valor expressivo de eleição, em detrimento da montagem e, até, do plano-sequência (porque o plano longo não é a mesma coisa que o plano-sequência).

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Como você observa a relação entre cinema e política? Ela se tornou mais problemática atualmente?

Mais problemática, no sentido de mais consciente, sem dúvida. Por pressão de certos sectores da crítica e da academia, que passaram a abordar o cinema a partir da expressão política como nec plus ultra. Passou-se a exigir ao cinema que salvasse o mundo; questão que, julgo, está arrumada desde que nas Histoire(s) du Cinéma o JLG deixou claro como o cinema foi incapaz de impedir a II Guerra e a barbárie nazi. Para responder mais directamente à pergunta: creio que hoje se exige ao cinema que reorganize o mundo consoante os nossos desejos políticos, e que, nesse aspecto, seja uma viagem confortável, que assegure o espectador de que ele está do lado certo. Pessoalmente, prefiro filmes que não sejam viagens confortáveis.

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Qual é o saldo atual do pós-modernismo no cinema?

Não sei. Julgo que já não existe, propriamente, um pós-modernismo cinematográfico. Terá acabado com o flop do O Último Grande Herói, do John  McTiernan.

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Qual é a contribuição, positiva ou negativa ou ambas, da crítica e dos principais festivais do mundo no estado de coisas atual?

Há contributos positivos e negativos, independentemente das intenções. Claro, todos estamos fartos do cliché do “filme de festival”, essa espécie de declinação moderna do antigamente chamado “filme de prestígio”. Mas é preciso ver para que a maior parte dos filmes de autor feitos no mundo inteiro, sobretudo quando assinados por jovens realizadores ainda sem “nome”, a única esperança de chegarem às salas e terem uma “carreira” é através dos festivais. Logo, é grande a tendência de se fazerem filmes a pensar em festivais. Os festivais, por seu lado, para terem uma esperança de se manterem relevantes socialmente, privilegiam agendas temáticas sócio-políticas; logo, os filmes são feitos de acordo com elas. É um círculo vicioso. O papel da crítica, aqui, seria entrar num festival e dizer que o melhor filme exibido era o Eika Katappa. Mas para isso seria preciso que houvesse, nesta terceira década do século XXI, algum Eika Katappa.

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Como você vê o cinema português das últimas décadas? E o brasileiro?

Do cinema português gabo sempre uma coisa que é completamente espantosa para um país tão pequeno e — ainda — tão pobre: a quantidade de filmes que se produzem, de ficção ou de documentário, e a diversidade. Nem tudo é obra de génio, evidentemente, mas quase tudo é obra distinta e minimamente idiossincrática. Há dezenas de realizadores portugueses que merecem atenção. O cinema brasileiro conheço pior, mas nas últimas décadas pareceu-me viver também um momento explosivo em termos de produção — mas também me parece que demasiado marcado, e muito mais do que no caso português, pela vontade de intervenção política estrita. Tenho pena que um grande cineasta como Júlio Bressane me pareça completamente secundarizado por autores e objectos que não têm um pingo da criatividade e do seu arrojo mas estão muito mais “ao gosto do dia”.

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E como você vê o momento atual da produção cinematográfica de países emblemáticos da história do cinema, como Estados Unidos, França, Alemanha, Itália, Rússia e Japão?

Por comparação com as histórias respectivas, mal. Há sempre autores, casos individuais, bons cineastas — e há-os em todos esses países. Mas, se se disser: “cinema francês dos anos 60”, ou “cinema alemão dos anos 70”, toda a gente tem uma ideia do que isso quer dizer, havia qualquer coisa que se passava em transcendência dos casos individuais. Agora, mesmo a expressão “cinema americano dos anos 2010”, não designa nada de minimamente substantivo.

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Quais são os diretores cujas obras você espera ansiosamente? E por quais motivos?

Godard, evidentemente. Pedro Costa. Frederick Wiseman. Christian Petzold. James Gray. Clint Eastwood. Outros, certamente. Por quê? Porque, independentemente de os novos filmes serem melhores ou piores, constituem, pelo menos para mim, momentos “verticais”, bóias no meio do oceano, marcos à beira da estrada. Ajudam-nos a perceber onde estamos. Gosto disso e preciso disso.

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Já é possível vislumbrar algumas características do que nos aguarda no futuro do cinema? E qual é o papel das plataformas de streaming nessa questão?

Um novo tipo de formatação. É evidente que já existe, por exemplo, um “estilo Netflix”, que mais não é do que uma super-televisão a produzir super-telefilmes. Em total demissão formal. Ou onde a forma é meramente evocativa, uma espécie de remorso. Nesse sentido, o Mank, do Fincher, é modelar. Mas acredito que haverá sempre lugar — e salas — para os pequenos filmes. As grandes bombas industriais passarão para o streaming, sem dúvida, e a pandemia já acelerou essa tendência. A economia do cinema blockbuster e multiplex mudará radicalmente. Talvez sejam boas notícias para o outro cinema. Como dizia o Alain Guiraudie numa entrevista recente: “a Disney passou-se para o streaming? Óptimo, fica mais espaço nas salas para todos os outros”.

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