PolíticaReflexão

O fascista familiar e nossos 30 mil mortos

por Eduardo Wolf

Na noite do dia 02 de junho, o Brasil ficou sabendo que 31.199 pessoas – trinta e um mil cento e noventa e nove pessoas – morreram em consequência do novo coronavírus. Foram necessários apenas 79 dias para que essa tenebrosa cifra fosse alcançada. A notícia dos mais de trinta mil mortos por COVID-19 chegou-nos acompanhada de outras tantas informações revoltantes. Enquanto o mundo inteiro expressava sua justa revolta pelo assassinato de George Floyd, um homem negro asfixiado por um policial branco racista, que lhe cravou bestialmente o joelho no pescoço por oito longos minutos até consumar sua execução, o presidente da Fundação Palmares no Brasil tratava o movimento negro por “escória maldita”. Enquanto o mundo inteiro passava do sinal amarelo de alerta contra a aberrante crise das democracias representativas constitucionais que levamos séculos para consolidar e chegava ao sinal vermelho para dar um basta ao avanço do populismo autoritário iliberal, o Procurador Geral da República no Brasil afirmava que “as Forças Armadas podem intervir” em nossa democracia. Enquanto ficávamos sabendo das trinta e um mil cento e noventa e nove mortes registradas por COVID-19, o Presidente, que escorraçou dois ministros da saúde em meio à maior pandemia global em mais de um século (e seguimos há 19 dias sem Ministro da Saúde), combateu todas as medidas necessárias para salvar vidas e passou dois meses empenhando-se em celebrar o caos, a destruição e a morte afirmava, com repugnante escárnio: “é o destino de todo mundo”.

O fato é que, à medida que nossa dantesca espiral destrutiva deixa claro que os limites do inferno em que caímos estão sempre a se alargar, uma peculiar figura parece sempre acompanhar, vigilante, nosso desespero crescente. Trata-se do fascista familiar.

O fascista familiar pode ser um conhecido mais ou menos próximo, mais ou menos distante, mas ele não falha – está sempre por perto em nossas horas de angústia e preocupação. Pode ser um colega de trabalho, ou até mesmo um familiar, íntimo ou afastado, não importa. Obviamente, o fascista familiar não guarda semelhanças com a figura histórica (e por vezes caricata) do militante dos fasci italiani di combattimento de Mussolini. Pelo contrário, e não sem impressionante verdade histórica, o fascismo não se faz apenas com brutamontes armados vociferando slogans extremistas, indispensável quanto isso seja. Como a história ensina, e o faz sem ambiguidade, o caminho para o fascismo é pavimentado com a colaboração firme, constante, ainda que por vezes quase discreta, do fascista familiar.

Um precioso e claro retrato desse fenômeno pode ser encontrado em The Plot Against America, O complô contra a América, romance de Philip Roth (2004), adaptado para a televisão por David Simon e disponível no canal HBO (2020) e sobre qual Jerônimo Teixeira escreveu recentemente. Roth começou a escrever o romance logo após a vitória presidencial de George W. Bush, repleta de suspeitas de ilegalidades como foi. Como nos conta Claudia Roth Pierpont (não é parente) em Roth Libertado, ao se deparar com um comentário do historiador Arhtur Schlesinger Jr. sobre a alternativa que Charles Lindbergh – o aviador, herói nacional e indecoroso antissemita condecorado por Adolf Hitler – teria sido para os Republicanos nas eleições de 1940, Roth se questionara:  e se os republicanos tivessem se unido em torno do antissemita e simpatizante nazista Lindbergh?

Refletindo sobre a hipótese extravagante em que Franklin Delano Roosevelt não tivesse sido eleito para um terceiro mandato – “uma eleição crucial que deu muito errado”, anota Claudia Pierpont, e a frase nos cala dolorosamente –, Philip Roth desenvolveu a trama de história contrafactual de O complô contra a América, com a vitória de Lindbergh e um governo alinhado à Alemanha nazista de Hitler na Casa Branca. No passado alternativo dos Estados Unidos, com a nação presidida pelo antissemita Lindbergh, não há tropas de camisas pretas fascistas marchando aos milhares pelas ruas de Nova York ou de Washington. Não há suásticas onipresentes e esquadrões paramilitares nazistas aos milhões, intimidando, espancando e matando judeus pelo país. Como sempre e invariavelmente é o caso, a derrocada se dá pela linguagem, expressão da corrosão das consciências, e avança para a destruição paulatina e minuciosa das instituições políticas, por sua vez expressão da corrosão do tecido social.

Lindbergh, condecorado por Hitler e sabidamente antissemita, sequestra o vocabulário da democracia, da paz e da liberdade. A ninguém ameaça com campos de concentração. Contudo, em pouco tempo, um programa de realocação de trabalhadores judeus pelo território americano é implementado, capitaneado pelo histórico antissemita Henry Ford, o industrial capitalista tornado ministro do governo fictício de Lindbergh. Uma não menos surpreendente iniciativa de enviar crianças judias para viver com “americanos autênticos” recebe o inofensivo nome Just Folks, Gente como a Gente, promovido por uma Agência de Absorção Americana – dirigida, adivinhe o leitor, por um rabino judeu conservador, Lionel Bengelsdorf, entusiasta de Lindbergh.

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Bengelsdorf e Lindbergh na adaptação da HBO (Reprodução)

Tampouco ele é caricaturado como um self-hating jew: tenta articular suas posições políticas escandalosamente servis ao perigo antissemita como o oposto do que são; justifica os discursos contra os judeus proferidos por Lindbergh atribuindo-os a uma “má escolha de palavras” da qual o presidente “arrepende-se em privado”. O absurdo é normalizado por pessoas normais, não por alucinados extremistas. Essa é a brilhante lição de O complô contra a América, livro e série: é a apatia em face do monstruoso, é a naturalização do que é odioso, é a gradativa adesão de pessoas comuns à inumanidade autoritária, intolerante e violenta que leva ao fascismo, tanto quanto, e com mesma intensidade, qualquer desabrida marcha neonazista de mascarados com tochas – com 30, 300 ou 30 mil pessoas, não importa. É isso que torna o fascismo “familiar”, próximo, conhecido, algo tão perigoso: ele anestesia nossos sentidos de alerta para o extremismo político.

É esse fascismo bem familiar – que relativiza todo o horror com retóricas várias, que de bom grado colabora com a tirania dando-lhe nomes diversos, que chancela e sanciona a vilania e a brutalidade por estar muito alarmado com tantas ameaças fantasmas – que se instalou no Brasil desde há tempos e se tornou paisagem comum em nosso desumano deserto do cotidiano flagelo brasileiro. Como no livro de Philip Roth e na série de David Simon, convivemos no Brasil com esse fascismo bem familiar, que, diante das dezenas de milhares de mortos provocados pelo COVID-19, tolera, justifica e apoia a guerra de Jair Bolsonaro contra a vida e contra a saúde. Não é preciso ser um camisa parda nas ruas, arma em punho – o fascista bem familiar repetirá os slogans de que as mortes não acontecerão, ou que, se acontecerem, serão insignificantes, ou que, se forem significativas, nada havia para se fazer, referendando docemente as disposições genocidas do Presidente e de seu governo sem muito alarde. Não é preciso vestir as roupas da caricatura abjeta e marchar com os símbolos do racismo, do nazismo e dos ódios primitivos – o fascista bem familiar vai dar de ombros diante de todas as evidências, ridicularizar as justas preocupações dos democratas e relativizar o horror, evocando tal ou qual episódio para igualar o que não é, nunca será, igual. O fascista bem familiar, hoje é impossível e inadmissível negar, vai roubar os símbolos da pátria sem disfarce, vai trair a Constituição falando em seu nome, vai zombar do sofrimento alheio e chamar sua odiosa atitude de “divergência de opinião”, vai celebrar a morte, caixões ao alto, dizendo-se lutador da “liberdade”, e sancionará a destruição de cada uma das nossas instituições democráticas com a mesma desfaçatez tranquila com que sancionou cada uma das 31.199 mortes por COVID-19 que o Brasil registrou até o dia 02 de junho.

Roth, escrevendo para o New York Times em 2004, por ocasião do lançamento do livro, afirmou que escrever O Complô contra a América, centrado nas experiências de sua família em Newark, lhe dera uma oportunidade de trazer seus pais de volta do túmulo. Infelizmente, não somos todos dotados dessa potente e assombrosa capacidade que é a arte dos escritores – rivais dos deuses –, que criam e recriam a vida humana na página antes em branco. Não podemos todos trazer do túmulo, pelo encantamento primevo e sublime das artes da palavra, nossos trinta e um mil cento e noventa e nove mortos. Pudera tivéssemos tal poder. Juntos, teceríamos a trama mais velha e mais bela, e por mágica transmissão, da palavra sopraria a vida novamente – trinta e um mil cento e noventa e nove vidas.

Não podemos. Mas nossa palavra há de poder alguma coisa. Mesmo desencantada, há de nos valer, recusando a degradação assassina da vida, que sempre começa e termina com o aviltamento da palavra. Não a nossa: trinta e um mil cento e noventa e nove nomes, profusão de palavras que nos cabe proteger agora ainda mais, exigem de nós que a depravação macabra tenha fim, e que uma segunda sombra, a do esquecimento, não termine por encobri-los.

Que ao lembrar desses trinta e um mil cento e noventa e nove nomes – e daqueles outros já fatalmente arrastados para seu lado –, o façamos com a palavra clara, pura e verdadeira: recusando a mentira, rejeitando a malícia, rechaçando a covardia e restaurando o vínculo entre palavra e realidade. Não foram 31.199 mortes ocorridas apesar dos melhores esforços, mas vai morrer gente. Não foram 31.199 mortes e daí? Não foram 31.199 mortes porque é o destino de todo mundo. Foram trinta e um mil cento e noventa e nove mortes das quais escarneceu, com atos e palavras, e para as quais contribuiu ativamente, o fascismo bem familiar de Jair Bolsonaro, daqueles que lhe servem, daqueles que lhe seguem.

Dizer isso é não esquecer.

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Cemitério Parque Taruma, em Manaus (Michael Dantas/AFP)

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Eduardo Wolf

Eduardo Wolf é Doutor em Filosofia pela USP e fundador do Estado da Arte.