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Legalidade e segredo

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Legalidade e segredo
A democracia entre o direito e o “poder oculto”

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por Juliana Fonseca Pontes

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De negro a Terra se cobre,

Mas a noite que desperta o mau, horrivelmente,

Não assusta os cidadãos

Pois o olho da lei vigia

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Friedrich Schiller

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Os que podem tratar secretamente dos negócios do Estado têm-no inteiramente em seu poder e em tempo de paz, estendem armadilhas aos cidadãos, como as estendem ao inimigo em tempo de guerra.

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Baruch de Espinosa

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Mozes en Aäronkerk por J. Lamers, 1895

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“Todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima não seja suscetível de publicidade são injustas”. Essa proposição de Immanuel Kant em À paz perpétua é por ele considerada “a fórmula transcendental do direito público” e não exprimiria um princípio tão somente ético, no sentido de remeter à doutrina da virtude, mas também jurídico, concernente ao “direito dos homens”. A explicação é simples: uma máxima que precisa permanecer secreta para ser bem-sucedida é uma que, caso fosse de conhecimento público, geraria tamanha reação em contrário que veria seu objetivo frustrado. Logo, se mantém oculta “pela injustiça com que a todos ameaça”.[1]

Essa fórmula foi lembrada por Norberto Bobbio nas muitas oportunidades em que tratou sobre o chamado “poder invisível” ou “poder oculto” (arcana imperii) nas democracias modernas. Na introdução que escreveu ao livro Der Doppelstaat de Ernst Fraenkel, o filósofo italiano se mostrou preocupado com a cisão do Estado em “Estado normativo”, aquele que observa a lei, e “Estado discricionário”, aquele que está liberado dos constrangimentos legais, e asseverou: “A diferença entre o duplo Estado de um governo autocrático e o duplo Estado de um governo democrático está no fato de que no primeiro o poder político puro (o “Estado discricionário”) é não somente manifesto, mas também exaltado, ao passo que no segundo, quando existe (mas sempre existe), vive sob a forma de poder oculto”.[2]

Esse poder oculto que, nas palavras de Marco Revelli, vive “aninhado no fundo falso do Estado democrático”[3] está na ordem do dia das preocupações brasileiras, notadamente no que diz respeito à condução da pandemia. A opacidade do poder tem tomado as discussões públicas, nas quais “paralelo”, “oculto”, “sombrio” têm sido qualificações reiteradamente utilizadas. Em verdade, estamos sendo instados a encarar a relação entre legalidade e segredo.

Em linhas gerais, o desenvolvimento do constitucionalismo moderno — e da rule of law democrática — se deu no esforço de trazer o exercício do poder político para a luz do dia. Na época em que o código de conduta dos déspotas era o maquiavélico e o soberano constituía a representação de Deus na Terra, tal como aquele celestial, devia ver sem ser visto, ser “o onividente invisível”:[4] enquanto se cercavam de símbolos de ostentação e cegavam a todos com sua opulência, mantinham os assuntos políticos longe do olhar do público. O poder, personificado no governante, funcionava segundo a Razão de Estado e em nada estava obrigado à transparência. Bem ao contrário.

Com o advento da Ilustração, alumiar os meandros da política e torná-la visível — bem como compreensível, em comunhão a todas as outras coisas — constituiu um dos propósitos mais destacados. Na esteira da obra kantiana, a transparência do poder despontou como máxima ética e jurídica, princípio central do direito público. Decerto não se pode dizer que Kant foi um democrata (sob pena de anacronismo, inclusive), mas sua produção filosófica em defesa da publicidade dos assuntos estatais, motivada por sua preocupação com a paz entre as nações, debilitou as justificativas dos arcana imperii, do ocultismo do poder. Sobre essa intolerância iluminista ao segredo, escreve Martim de Albuquerque: “o afastamento de tudo quanto é superstição, fanatismo, ocultismo, subliminar enfim, contrapõem-se à política e com ela à diplomacia enquanto segredo. Tudo deve ser luz”.[5]

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Kant e amigos à mesa, por Emil Doerstling, c. 1892-1893

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Embora o “Século das Luzes” tenha conjugado contradições de toda sorte, foi também nele que surgiram as democracias liberais, que objetivavam ser não apenas o “governo do público pelo público”, mas também o governo que se dá em público, às claras, sem segredos. A partir da comunhão entre pluralismo, relativismo e procedimento, essa forma de organizar o poder substituiu a Razão de Estado pelas razões dos cidadãos — as leis, necessariamente do conhecimento de todos. (Giuseppe Ferrari, ao escrever sua Histoire de la raison d’Etát, afixou claramente: “Não devo dissimular que falo de uma ciência oculta, assassinada pela publicidade moderna e solenemente proscrita pela Revolução de 1789”).[6] Distinto não poderia ser: considerando o arranjo entre legalidade e legitimidade próprio desse regime político, somente se a administração dos bens comuns e as tomadas de decisão forem públicas é possível assegurar a observância aos princípios e regras jurídicas — e, então, falar em “império da lei” ou em Estado de Direito. Em poucas palavras, a legalidade, no sentido que lhe foi concedido, passou a exigir a publicidade: para submeter o político ao jurídico, era necessário diminuir o espaço obscuro em que o poder poderia operar arbitrariamente. A crença na transparência passou a ser central, como nas palavras de Espinosa (embora ainda tratando da monarquia): “é preferível os planos honestos do Estado serem conhecidos dos inimigos a estarem escondidos os perversos segredos dos tiranos. […]. Que o silêncio seja muitas vezes útil ao Estado, ninguém pode negar; mas que sem ele o mesmo Estado não possa subsistir, ninguém poderá jamais provar”.[7]

Uma demonstração da relação íntima engendrada entre legalidade e publicidade é o desenho institucional do Parlamento. Como órgão de representação política, “escreve o direito” e decide questões afetas à comunidade, a partir do dissenso — a competição de argumentos, ideias, valores e interesses é o princípio que mobiliza suas atividades. No entanto, essa discussão precisa ser pública, ou então não há diferença entre os Parlamentos e os corredores dos palácios. É como colocou Camillo de Cavour: “La plus mauvaise des chambres est encore prèférable à la meilleure des antichambres[8] — a pior das Câmaras ainda é preferível à melhor das antecâmaras. A pior decisão pública ainda é preferível à melhor decisão secreta. A publicidade passou a ter valor em si mesma.

Embora esse tenha sido o objetivo, por certo não foi possível trazer a integralidade das operações do poder político para o alcance do olhar do público. O instituto do “segredo de Estado” ainda é amplamente prestigiado nas democracias contemporâneas e não há ingenuidade que nos impeça de constatar que muito se decide a portas fechadas, na privacidade dos gabinetes, sem que os governados sequer desconfiem. Também não há como afirmar sem grandes evidências em contrário que a publicidade de fato promove a participação efetiva das massas no poder — há quem diga que seu único efeito é tornar visível o prestígio das agências estatais aos interesses das elites políticas, nada mais. No entanto, no consenso democrático ocidental (cada vez menos sólido, é verdade), um governo aberto é preferível a um governo fechado: inegavelmente, a transparência do poder foi a regra escolhida e o segredo é sua exceção. Por essa razão, é possível (e tão comum) o fenômeno do escândalo: gera espanto quando se descobre que um agente público fez, às escondidas, algo que não devia — que, para além do malfeito, guardou um segredo. Nesse mesmo sentido, conclui Bobbio: “a democracia avança e a autocracia retrocede conforme o poder seja cada vez mais visível e os arcana imperii, os segredos de Estado, deixam de ser a regra e se convertem em exceção, uma exceção que se recolhe em âmbitos sempre mais restritos e categoricamente estabelecidos” [9]

Entretanto, Carl Schmitt, para quem a exceção é uma possibilidade que o direito não é capaz de constranger, talvez colocasse a questão diferentemente[10].

Para o controverso jurista alemão, é o poder político puro — o poder soberano — que funda, mantém, e quando considera necessário, suspende o ordenamento jurídico. O sujeito que goza desse poder virtualmente ilimitado, na definição que o jurista lhe dá, é exatamente “wer über den Ausnahmezustand entscheidet[11] — “aquele que decide sobre o estado de exceção”. Ora, se alguém decide quando o direito tem sua força normativa suspensa, decide também quando (e por quanto tempo) essa força produz seus efeitos — dispõe sobre a excepcionalidade, mas também sobre a normalidade jurídica. Em uma palavra, a definição schmittiana de soberania inverte a lógica liberal e advoga estar o direito, no limite, sempre submetido à uma decisão pura do poder. Logo, como conclusão evidente e necessária, o direito não seria capaz de tornar transparente o poder que o sustenta.

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Carl Schmitt, à direita, na Paris ocupada, 1941

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Vejamos o argumento sob outro ângulo. Em A ditadura, Schmitt escreveu que, no século XV, a justificativa teológica e patriarcal do poder se esgotou e a política passou a ser tomada como uma ciência. Nesse contexto, os segredos estatais deixaram de ser místicos e passaram a ser técnicos, como aqueles comerciais e industriais. Lembrando Arnold Clapmar, o alemão asseverou que todas as ciências, tais como a teologia, a teoria do direito, a pintura, a estratégia militar, etc, possuíam seus arcana e utilizavam meios ardis para alcançar seus fins: a política não era diferente. Assim, enquanto os arcana republicae (“poderes ocultos da República”) constituiriam as “forças propulsoras do Estado” e atuariam nas profundezas, seriam concedidas “certas manifestações que suscitam a aparência de liberdade” para tranquilizar o povo que, no entanto, não passariam de instituições decorativas (simulacra).[12]

O ponto que nos interessa aqui é o seguinte: os arcana se distinguiriam entre arcana imperii e arcana dominationis. Os primeiros seriam os métodos empregados para “manter o povo tranquilo” em tempos de normalidade, e os últimos, aqueles empregados durante acontecimentos extraordinários, como rebeliões e revoluções. O fundamento dos imperii seriam os “direitos de soberania” e o fundamento dos dominationis, “o direito público de exceção”.[13] Desse modo, o segredo ou, de forma mais fundamental, o caráter opaco e arbitrário do poder guardaria relação tanto com a norma quanto com a exceção, na medida em que, no limite, se reporta à soberania — para Schmitt, um “conceito-limite” (Grezbegriff).

Essa é uma conclusão inquietante e certamente contestável, mas não é necessário concordar com o arranjo teórico schmittiano para conceder que a relação entre a transparência do poder e a sua opacidade talvez remonte mesmo à relação existente entre normalidade e excepcionalidade, entre Estado de Direito e Razão de Estado, no limite, entre direito e política. Esse parece mesmo ser o problema de sempre.

Seja como for, certo é que quanto mais quimérico for o poder do Estado, menos dele se participa e menos protegido se está contra ele. Hannah Arendt, ao analisar o fenômeno do totalitarismo, escreveu que “a única regra segura num Estado totalitário é que, quanto mais visível é uma agência governamental, menos poder detém; e quanto menos se sabe da existência de uma organização, mais poderosa ela é. […] O verdadeiro poder começa onde o segredo começa”.[14] Em sendo assim, se o segredo serve ao poder na sua condição pura, máxima, irrestrita, a publicidade é a grande aliada daqueles que podem sofrer com suas consequências. Lembrando a máxima de Kant, aquilo que disser sobre o direito dos homens e lhes for escondido, justo não deve ser.

Por fim, cabe registrar que, para Bobbio, a democracia costuma ser acusada de ser um regime político que não cumpre suas promessas. Não cumpriu sua promessa de eliminar as elites do poder. Não cumpriu a promessa do autogoverno. Não cumpriu a promessa de integrar igualdade formal com igualdade substantiva.[15] Mas e quanto a promessa de tornar visível o poder? Essa é uma que, como todas as outras, deve ser exigida sem trégua. Desocultar é a tarefa que se impõe hoje e que continuará se impondo, sem fim à vista.

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Hannah Arendt

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Notas:

[1] KANT, Immanuel. A paz perpétua — um projeto filosófico. Trad: Artur Mourão. Lusofia Press: Covilhã, 2008, p. 46-47.

[2] BOBBIO, Norberto. Introdução, p. XXIIII. In: FRAENKEL, Ernst. Der Doppelstaat, (Frankfurt am Main: Europaische Verlagsansalt, 1974). Trad: Il doppio Stato. Contributo alla teoria dela ditatura. Torino: Einaudi, 1974, apud REVELLI, Marco. Prefácio. In: Democracia e segredo. Org.: Marco Revelli; Trad. Marco Aurélio Nogueira. 1. Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 11.

[3] REVELLI, Marco. Prefácio. In: Democracia e segredo. Org.: Marco Revelli; Trad. Marco Aurélio Nogueira. 1. Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 11.

[4] BOBBIO, Norberto. O poder invisível dentro do Estado e contra o Estado. In: Democracia e segredo. Org.: Marco Revelli; Trad. Marco Aurélio Nogueira. 1. Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 30.

[5] ALBUQUERQUE, Martim de. Razão de Estado e segredo <<versus>> democracia e publicidade? In: BENTO, Antônio (org.). Razão de Estado e democracia. Coimbra: Almedina, 2012, p. 188.

[6] FERRARI, Giuseppe. Histoire de la raison d’État. Nova edição: Kimé, Paris, 1992, p. X, apud MOLINA, Jerónimo. Introdução à razão de Estado. In: BENTO, Antônio (org.). Razão de Estado e democracia. Coimbra: Almedina, 2012, p. 206.

[7] ESPINOSA, Baruch de. Tratado político. Tradução: Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 81-82.

[8] A famosa citação de Cavour foi lembrada em francês por Carl Schmitt em: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar. Trad.: Inês Lohbauer. São Paulo: Scritta, 1996, p. 8.

[9] BOBBIO, Norberto. O poder invisível dentro do Estado e contra o Estado. In: Democracia e segredo. Org.: Marco Revelli; Trad. Marco Aurélio Nogueira. 1. Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 40.

[10] Cf. SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlim: Duncker & Humbolt, 2015; SCHMITT, Carl. Verfassunglehre. Berlim: Duncker & Humbolt, 2017.

[11] SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Berlim: Duncker & Humbolt, 2015, p. 13.

[12] SCHMITT, Carl. La ditadura: Desde los comienzos del pensamiento moderno de la soberania hasta la lucha de clases proletaria. Trad.: Jose Diaz García. Madrid: Revista de Occidente, S.A: 1968, p. 45-46.

[13] SCHMITT, Carl. La ditadura: Desde los comienzos del pensamiento moderno de la soberania hasta la lucha de clases proletaria. Trad.: Jose Diaz García. Madrid: Revista de Occidente, S.A: 1968, p. 47-49.

[14] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad.: Roberto Raposo, 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 453.

[15] BOBBIO, Norberto. O poder invisível. In: Democracia e segredo. Org.: Marco Revelli; Trad. Marco Aurélio Nogueira. 1. Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 32.

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Juliana Fonseca Pontes

Juliana Fonseca Pontes é pesquisadora do Grupo de Pesquisa Filosofia Prática: Investigações em Política, Ética e Direito (CNPq/CESUPA).