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O liberalismo brasileiro não é um humanismo

por Rodrigo de Lemos

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Por que o liberalismo é um humanismo?

Dentre todas as catástrofes da presidência Bolsonaro, a única positiva é a desmoralização do liberalismo. A frase é contraditória, mas é isto mesmo: a desmoralização do liberalismo é uma catástrofe e é ao mesmo tempo um lucro. Catástrofe porque o nome de uma tendência política que poderia marcar uma saída pelo centro serviu de garantia a um governo bárbaro como jamais se viu num país que jamais economizou em barbarismo. Lucro porque devemos acreditar que deve haver algo de positivo na emergência de uma verdade, por terrível que ela seja.

Uso o termo liberalismo num sentido específico. Entendo-o neste ensaio como a tradução em política de uma visão humanista da sociedade. Humanista não quer dizer, obviamente, humanitário. Tampouco implica uma edulcorada fé na humanidade, uma esperança ingênua em amanhãs cantantes, como diria dele um certo cinismo afetado e reacionário. Refiro-me a um humanismo num sentido mais próximo ao que palavra tinha em suas origens. Na Renascença, humanistae eram os cultores das letras humanas (ou das letras mais humanas, como se dizia à época: litterae humaniores), daquele conjunto de literaturas e de disciplinas oriundas do mundo antigo, em grego e em latim. Os humanistae encontravam a oposição dos teólogos como os da Sorbonne, debochados por Rabelais, formados na escolástica e versados, como clérigos medievais que ainda eram, nas litterae sacrae (letras sagradas) das Escrituras. A guerra entre humanistas e teólogos não traduzia somente o conflito entre duas concepções da educação, tampouco meramente dos estudos antigos. Tratava-se de duas noções distintas da sabedoria — dessa condição que é a dos homens de ter que fazer algo da sua vida com vistas a um fim maior ao da sua própria duração.

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Rabelais

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A Sabedoria dos teólogos é aquela de que fala a Bíblia, que passa pela figura de Salomão e que se configura nos preceitos dos Provérbios e nas perguntas angustiadas do Eclesiastes ou de Jó. Ela é dom sobrenatural, Sabedoria divina, revelada na letra bíblica e tornada tanto quanto possível inteligível pelas leituras e pela discussão entre seus intérpretes ao longo dos séculos. A sabedoria dos humanistas vem sobrepor-se a essa Sabedoria sagrada, sem necessariamente apagá-la. Ocorre que ela não depende da Revelação, mas decorre de uma experiência acumulada exclusivamente humana. Está contida nos escritos de homens do passado que viveram em momentos altos das culturas grega e latina, em suas obras de poesia, de história ou de filosofia, vazadas nas línguas clássicas. Daí a necessidade dos humanistas de renovar os estudos da filologia, da retórica ou da gramática antigas, meios para acessar e apreciar essas velhas novidades contidas em Heródoto, em Platão, em Cícero. Menos do que o exercício árido e desencarnado de uma competência linguística voltada solipsisticamente a si mesma, as disciplinas dos humanistas consistiam em escavar esses textos complicados para desenterrar uma sabedoria humana anterior e independente quanto à da Bíblia (ainda que talvez condizente com sua mensagem).

Ao contrário da Sabedoria divina, supostamente única por provir de uma única fonte divina, a sabedoria humana não pode se dar ao luxo das mesmas pretensões à soberania. Se há uma educação que venha da leitura de Platão e de Aristóteles, de Ésquilo e de Eurípides, de Diógenes e de Epíteto, é a da extrema variabilidade das coisas humanas. Nada do que é humano me é alheio — e isso tudo que é humano é imenso. Tudo é móvel e diverso no mundo das opiniões e das sensibilidades. Afinal, era um mundo desaparecido que os humanistas tentavam desenterrar – um mundo ele mesmo com sua diversidade infindável. É por isso que a experiência humanista encerrava em si a dificuldade, ou mesmo a impossibilidade, de encontrar a sabedoria em um só conteúdo, em uma só verdade. A sabedoria humanista é formal, está paradoxalmente na abertura e na discussão entre diferentes concepções de sabedoria. Não há eleição divina, não há voz do Além que nos guie infalivelmente nesse vozerio de sábios, cunhado nas declinações e nas conjugações gregas e latinas.

Nessa discussão de saída incerta sobre a sabedoria humana, estamos inevitavelmente sozinhos enquanto humanidade. No entanto, não estamos sozinhos enquanto indivíduos. A razão que nos habita é a razão que habita o outro — não necessariamente como portadora de uma verdade substantiva comum, mas como possibilidade de acordo e como mediadora no desacordo. A sabedoria nada além de humana nos deixa no paradoxo de uma solidão coletiva, mas de uma universalidade do indivíduo. Essa universalidade é permitida ao indivíduo por suas faculdades. Ao mesmo tempo, ela é o que garante uma intersubjetividade possível, por meio daquela conversação civil idealizada por Montaigne.

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Montaigne

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A ideia de uma Sabedoria divina não é com isso esquecida — e, entretanto, não pairam mais e mais dúvidas sobre o seu caráter, afinal de contas, também humano e demasiado humano? É assim que a sabedoria humanista se distingue da Sabedoria cristã, porque independente quanto ao sobre-humano, mas também quanto às sabedorias antigas, porque ela busca nessas receitas (dos cínicos, dos epicuristas, dos estoicos, talvez mesmo na dos cristãos) vias múltiplas ao Bem. A sabedoria humanista reside na postura de distanciamento mais ou menos cética quanto a todas as outras sabedorias, em uma consciência de sua precariedade e da necessidade de habitar essa precariedade, inclusive ao pretender à posse de uma Sabedoria divina (e inclusive, por que não?, ao afirmar a sua própria moral). Os Ensaios de Montaigne prestam um testemunho definitivo dessa mentalidade humanista cética e aberta.

Quando se abriu essa outra rachadura no edifício religioso da Idade Média que foi a Reforma, tornou-se independente do todo social medieval a vontade de Salvação do indivíduo, exatamente como o humanismo o fazia com a sabedoria antiga e nada mais que humana. Sobrevieram as guerras entre católicos e protestantes, ao preço da segurança civil e existencial. Foi então que, precisamente sobre a mistura de ceticismo e de universalidade legada pela cultura humanista, o Estado moderno se assentou, como guarda-noturno contra as sevícias e os excessos perpetrados por essas concepções de Bem conflitantes e conflituosas. Herdava o ceticismo civil (mas não desinteresse individual) quanto ao que seja a boa vida e na universalidade de uma racionalidade mínima partilhada pelos indivíduos autônomos na sua busca do Bem.

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Por que o liberalismo brasileiro não é um humanismo?

Essa longa incursão no passado nos ajuda a entender os jornais do dia. É óbvio que nem sob o aspecto do ceticismo civil, nem no que diz respeito ao par universalidade-igualdade, o governo de Bolsonaro pode ser considerado minimamente liberal ou humanista. Por outro lado, o que chama especialmente a atenção é que os ditos liberais brasileiros, ao aceitarem apoiar sua campanha e seu governo — sob o pretexto de apoio à economia de mercado, transformada em culto economicista —, aceitaram aviltar o que pensavam, ou melhor, e o que é mais provável, o que nem sabiam que deveriam pensar ao se pretenderem liberais. Em Os Donos do Poder, Raymundo Faoro já observara o quanto o liberalismo era oligárquico no Brasil e na América Latina do século XIX. Sessenta anos depois — ou seja, na última semana — a revista The Economist foi nesse mesmo sentido, ao apontar que o liberalismo nos nossos países era uma planta de estufa importada pela classe média alta superdiplomada.

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Ilustração de Lo Cole a “The flickering light of liberalism in Latin America”, na Economist

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Não é o mesmo que dizer que o liberalismo entre nós não é um humanismo, mas uma ideologia de classe?

O termo ideologia de classe cheira a marxismo. Certamente — mas podemos nos perguntar por que há um clima de 1848 no ar. O fato é que, por certo, um componente humanista entra na mistura instável do que chamamos de liberalismo, mas há também e evidentemente um elemento de classe na origem de certas ideias que integram essa tradição política. Quando Colbert, ministro que foi o expoente maior do mercantilismo sob Luís XIV, pergunta ao comerciante Legendre o que o Estado poderia fazer pelos comerciantes de Paris, e quando Legendre responde: “Nous laisser faire” (Deixar-nos fazer, mas também deixar-nos em paz), a frase que se tornaria lema do liberalismo exprime o interesse específico de uma classe, desejosa de limitar o arbítrio do Estado em sua atividade econômica. O laissez-faire de Legendre, ecoado no século XVIII pelos fisiocratas, estaria também na boca da merchant class inglesa, assim como no discurso de outras classes associadas de perto à vida econômica capitalista e interessadas mais ou menos justamente em fazer seus negócios à revelia dos fins do Estado. Daí que o mesmo laissez-faire possa funcionar como ideologia de classe ao se apresentar como ideia com pretensões à universalidade ao mesmo tempo em que oculta seu caráter de arma na luta crua por recursos e por um lugar dominante na manada humana. O laissez-faire não se confunde com o ceticismo civil e com a universalidade-igualdade daquela outra vertente, humanista, do liberalismo. Pode ser condição ao humanismo; pode haver cooperação entre as duas formas — mas o laissez-faire não é em si mesmo um humanismo. Pode consistir, não raramente, no seu contrário.

É o caso do que se chamou de liberalismo brasileiro.

Talvez, nesse ponto, venha à lembrança de alguns o exemplo do empresário bolsonarista, liberal quando se trata das célebres reformas que desinchem o Estado, que flexibilizem as relações de trabalho, que reduzam impostos, mas nem tanto quando se trata de expor-se à competição internacional pela abertura comercial e pela supressão de suas vantagens fiscais. “O Estado sou eu”, dizia Luís XIV; “O inferno são os outros”, dizia Sartre. O liberal brasileiro fundiu as duas citações em uma só: L’État, c’est les autres“O Estado são os outros”. O político. O SUS. A Justiça do Trabalho. A fiscalização.

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(Reprodução Twitter via Agência Brasil/EBC)

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O fato é que L’État, c’est les autres poderia ser o lema da outra classe social que foi uma praça-forte do bolsonarismo e que constitui o grosso dos novos liberais brasileiros: a classe média, formada pelas chamadas profissões intelectuais. Talvez advogados, engenheiros ou economistas que apoiaram Bolsonaro pensem em si mesmos como mártires do livre mercado, especialmente quando autônomos ou empregados no setor privado. Resta que, no Brasil, muitas das profissões ditas liberais mais rentáveis são regulamentadas (como o são na maior parte do mundo), e seu acesso nada tem de livre. Dá-se mediante diploma. Ou seja, mediante um poderoso mecanismo de reserva de mercado sancionado pelo Estado. O profissional regulamentado é uma espécie de funcionário público em segundo grau, com um pé em dois mundos: por um lado, goza de uma reserva que o resguarda quanto a realidades cruas do mercado de trabalho globalizado; por outro, beneficia-se dos mecanismos de oferta e de procura que, em alguns casos, possibilitam remunerações superiores ao que o ordenado do funcionário público jamais poderia alcançar. Nada há de injusto nisso. Mas “O Estado são os outros”.

Não que as profissões liberais devam ser desregulamentadas. Não sei quantos de nós gostaríamos de viver em um mundo em que o exercício profissional da Engenharia fosse totalmente livre. No entanto, admitir a pertinência de um controle público já é contrariar a lógica pura do laissez-faire, ao reconhecer a maior pertinência da ação vertical do Estado sobre a do mercado como instrumento de alocação de recursos. O sufrágio universal do cliente poderia ter como custo permitir a uma horda de charlatães e impostores o exercício da Engenharia e de outras profissões, talvez sem nenhuma base científica. Pode ser que, em abstrato, a redução das remunerações dos engenheiros fosse uma consequência positiva, mas a possibilidade de viver sem saber em um arranha-céu construído por engenheiro formado pela vida é um argumento forte em contrário. Quais efeitos trariam à coletividade proclamarem-se farmacêuticos ou médicos por livre aclamação dos mercados?

(É claro que, se quisermos respeitar o universalismo liberal — e sem viés classicista —, deveríamos reivindicar a mesma proteção de acesso às profissões ditas inferiores. Não só porque os pedreiros mereceriam as mesmas proteções quanto ao mercado que os economistas — como acontece nos países em que as classes trabalhadoras são mais organizadas —, mas mais fundamentalmente ainda: em que um pedreiro ou um eletricista minimamente formados seriam de menor interesse à coletividade do que um médico, e inclusive sob o aspecto da preservação à vida e da segurança pública? Mas resta saber se nós, da classe média resguardada por diplomas, estaríamos dispostos a pagar mais por serviços braçais minimamente qualificados, e isso por um puro imperativo moral universalista…)

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Classe média e falsa consciência

Uma análise como esta pretende ser menos uma acusação a pessoas do que a uma forma de falsa consciência por parte de certa classe média. O ideal do empreendedorismo parece harmonizar-se com o do liberalismo (e até certo ponto é assim), mas a própria dinâmica do mundo globalizado e liberal empurra a classe média a entrincheirar-se em um certo número de profissões que pouco têm a ver com o espírito de aventura mitificado na Silicon Valley. São aquelas ocupações públicas ou semi-públicas (como as profissões regulamentadas) que o geógrafo americano Joel Kotkin, em um artigo recente na Quillette, chamou de clerisy, os clérigos, encarregados da função ideológica na sociedade: os burocratas, os professores, os médicos, os advogados, entre outros. Em oposição a eles, e dentro da classe média, haveria a yeomanry, a classe média tradicional, composta de pequenos comerciantes, artesãos e proprietários, em declínio na globalização e largamente apoiadora de Trump, do Brexit ou de Le Pen. Se o mundo globalizado é um campo aberto às inovações produtivas de todo tipo, também é verdade que sua hiperconexão o torna um mundo instável como nunca – um vírus ou uma inovação da China, de Cingapura ou da Suécia pode a qualquer momento esmagar ou disromper um setor de atividade em Goiânia ou em Kuala-Lumpur, e nada é menos certo do que a hipótese de que os disrompidos do sistema poderão se recolocar no mundo da produção novamente. Entenda-se que, nesse cenário, e em um país precário com o Brasil, a classe média tente se aferrar à claricatura para preservar-se da torrente — vimos a pauperização que acometeu o proletariado e as classes médias baixas dos países ricos, e tudo o que os garantes liberais do sistema souberam fazer foi apresentar-lhes um silêncio compungido e um tapa nas costas, lembrando depois ao contra-mestre francês ou americano que sua precarização era necessária ao enriquecimento do seu homólogo chinês ou indiano.

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(Mark Makela/Getty Images)

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Não surpreende, assim, que haja uma névoa de 1848 no ar — e que quem esteja capitalizando esse clima sejam Trump ou Le Pen. O que certamente ainda não compreendemos plenamente, por outro lado, é por que parte tão importante da clericatura brasileira tenha aderido à fúria antirregulatória, característica da yeomanry em outras paragens, contra a cadeirinha de bebê, os radares de trânsito, o mercado de trabalho, o isolamento social ou as leis ambientais. Em uma sociedade desigual ao extremo, os clérigos da classe média alta se crêem mais inabaláveis do que de fato são?

Como quer que seja, o que ressalta desse quadro mundial e nacional complexo é a ambivalência central do liberalismo à brasileira. Sem surpresas, em uma sociedade onde a Modernidade é um projeto em suspenso, o componente classista suplantou o que haveria de humanismo no ideário liberal. Em países como os anglo-saxões, o fortalecimento da razão calculadora acompanhou a emancipação do homem comum em indivíduo (foi o advento do homo economicus, de Louis Dumont). Esse mesmo elemento economicista, no Brasil contemporâneo, propagou os conteúdos antiuniversalistas que se escondiam sob o rótulo liberal. Foi essa dinâmica que permitiu aos liberais se colarem ao reacionarismo mais brutal sem que maiores contradições se impusessem à sua consciência. Uma sensibilidade mais completa quanto à importância do indivíduo, trilhada na herança sutilmente cética e universalista do humanismo, é o que falta não só aos liberais, mas à nossa sociedade, sob pena de seguirmos achando que o Estado são os outros — e que esse é o nosso maior problema.

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(Do autor, leia também: Por que o capitalismo odeia os intelectuais?)

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.