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Liberalismo e cultura, crônica de um desencontro

por Rodrigo de Lemos

Ócio e negócio; Marc Fumaroli lembra que o velho preconceito das classes superiores antigas opunha o otiume o negotium como dois tempos na vida do indivíduo: o primeiro correspondia ao da formação, ao da cultura da alma mencionada por Cícero, apta a preparar o indivíduo ao gozo esclarecido e digno de uma existência enquanto cidadão livre. Essa liberdade na cidade, por sua vez, equivaleria a um segundo tempo, ao do negotium, ao tempo atarefado da decisão política e da existência econômica. Aos olhos modernos, o paradoxal nas sociedades que gestaram esse ideal é que a liberdade de poucos, assim como a educação necessária ao seu exercício, fundou-se frequentemente na servidão de muitos, e acredita-se que abolição dos privilégios em que repousava essa disparidade estendeu os benefícios da existência livre às massas anteriormente dela excluídas. Por sua vez, a irradiação desse acúmulo da cultura não seria – sob o nome de esclarecimento – a condição mesma de conservação e de prosperidade de uma sociedade liberal baseada em uma discussão franca de muito por muitos?

 Nem sempre, bem entendido, a relação entre liberalismo e cultura seguiu uma linha direta. Tocqueville foi dos autores a debruçar-se sobre esse problema. Na sua descrição dos Estados Unidos democráticos dos anos 1830, a mobilidade social e o mercado livre teriam as consequências mais importantes para a produção artística, tanto nas artes menores quanto nas Belas-Artes. Nas sociedades do privilégio, o exercício de uma arte é um privilégio entre tantos, e os artistas formam corpos profissionais dificilmente penetráveis, regidos por regras de excelência e por um orgulho coletivo, de modo que “o objetivo das artes é então o de fazer o melhor possível, e não mais rápido nem a melhor preço”. É assim também porque o público só pode ser o público em função de um privilégio. A permanência incontestada por gerações e gerações no topo da sociedade contribui a que o comprador favoreça a excelência do objeto, e a mesma obra-prima que enobrece a guilda encontra como que seu termo natural em uma aristocracia que não deseja outra coisa que uma obra-prima em harmonia com sua posição excepcional na sociedade. Na antiga Europa do privilégio, “os artesãos só trabalham para um número limitado de compradores, muito difíceis de satisfazer. É da perfeição de seus trabalhos que depende principalmente o ganho que esperam.”

 Com a desaparição dos privilégios, tanto da nobreza quanto dos corpos profissionais, desaparecem igualmente essas condições favoráveis ao extraordinário no terreno das produções do espírito – o que não implica, por certo, que as obras-primas não mais se façam, mas que elas seguem dependendo da aparição de um comprador que se assemelhe ao antigo consumidor aristocrático, no que se refere à disponibilidade de tempo e de meios financeiros, o que não é mais tão fácil encontrar em termos de classe. De resto, o mercado livre e a mobilidade social tomam o contrapé dessa possibilidade. As fronteiras das profissões se abrem, e uma “turba entra e sai incessantemente”, de maneira que “seus diferentes membros se tornam estranhos, indiferentes e quase invisíveis uns aos outros” e que “cada artesão é trazido a si mesmo, só buscando ganhar o máximo de dinheiro possível aos menores custos”. Ao mesmo tempo, o comprador já não difere essencialmente do produtor. O gosto pelos confortos materiais típicos das democracias, associado à possibilidade mesma do rebaixamento social e de expansão ilimitada dos objetos de cobiça, provoca a ansiedade pelo acúmulo de objetos de menor qualidade que satisfaçam os caprichos ou que, por sua acumulação mesma, sejam proveitosos nos tempos ruins. Por sua vez, o artesão, sabendo-se feito da mesma matéria ao comprador, adivinha seus desejos e suas necessidades, buscando reduzir o valor unitário do que produz em favor do ganho em escala e em detrimento da excelência do produzido. “Quando só os ricos possuíam relógios de pulso, esses eram excelentes. Hoje se fabricam somente medíocres, mas todos os têm”, observa Tocqueville.

O impacto de uma organização social instável e de uma economia aberta sobre as Belas-Artes não é menor do que sobre as “artes úteis”. Por um lado, “a maioria dos que já haviam contraído o gosto pelas Belas-Artes tornam-se pobres”; por outro, “muitos do que ainda não são ricos começam a conceber, por imitação, o gosto pelas Belas-Artes”. Há um acréscimo no número geral de consumidores, acompanhado pelo decréscimo de compradores “muito ricos e muito finos” – daí a multiplicação das obras, mas seu enfraquecimento em mérito. Se esse é caso nas artes menores e nas maiores, por que não seria assim também quanto a esses outros objetos artesanais tornados itens de massa que são os livros ou mesmo quanto às artes da imagem móvel que surgiriam no final do século XIX? Nos anos 1830, Tocqueville já flagra, em estado nascente, as bases daquela indústria da cultura cujo advento atrairá a atenção da crítica no século seguinte.

 A visão de Tocqueville contribui à compreensão da ambiguidade subjacente às democracias liberais quanto à vida intelectual e à cultura – percebida também por liberais preocupados com o tema como Mario Vargas Llosa em A civilização do espetáculo. Por um lado, as tendências utilitárias e hedonistas identificadas em Da democracia na América nos anos 1830 parecem motivar uma desconfiança global, ou ao menos um menosprezo, das sociedades abertas autais quanto aos valores e às atividades que distinguiam as antigas elites patrimoniais: por que as elucubrações da ciência básica, da arte pura ou das humanidades desinteressadas se a tecnociência e o tecno-entretenimento parecem responder imediatamente aos imperativos de utilidade e de divertimento que reinam como que fundados em si mesmos? Por outro lado, as democracias, no seu tempo de glória política, estabeleceram contrapesos às forças de nivelamento propulsionadas pela mobilidade social e pelo mercado, sob forma de instituições educativas e culturais – museus, fundações, rádios e televisões públicas – que seguiam objetivos e tempos próprios. Os regimes livres agiram assim em coerência consigo mesmos, conscientes do papel do esclarecimento como sua condição de sobrevivência. Quais consequências pode sinalizar-lhes a contestação desse estado de coisas por uma poderosa tendência anti-intelectual na sociedade contemporânea, que por vezes se reclama paradoxalmente do próprio idioma e do vocabulário do liberalismo?

Rodrigo de Lemos

Rodrigo de Lemos é doutor em Literatura pela UFRGS-RS e professor de Língua e Cultura Francesa na UFCSPA-RS. Escreve sobre Cinema e Literatura no Estado da Arte.