LIVRES: Liberalismo, pandemia e o “Estado Mínimo”
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Este ensaio é fruto da parceria entre o Estado da Arte e o LIVRES, associação civil sem fins lucrativos que atua como um movimento político suprapartidário em defesa do liberalismo.
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O liberalismo, a pandemia e o Estado Mínimo: união impossível?
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por Guilherme Magalhães
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A Covid-19 fez com que muitos pensadores decretassem a morte da tradição liberal e da sua suposta luta pelo “Estado Mínimo”. Por desconhecimento (ou pura desonestidade), articulistas e intelectuais viram a defesa de nomes como Armínio Fraga e Marcos Lisboa em favor de um Estado forte como uma contradição. Não poderiam estar mais errados no seu diagnóstico.
A tradição liberal sempre defendeu a manutenção de um governo forte e atuante naquilo que devem ser as suas atribuições fundamentais, saúde, educação e justiça. Podemos discordar nos mecanismos utilizados para atingir esse fim, mas de Locke a Friedman, é pouco provável que um olhar atento nos fará ver uma repulsa pela existência de governos institucionalmente fortalecidos. Muito pelo contrário: não há democracia sem um Estado funcional.
Locke, Adam Smith, Mill, Rawls, Friedman e Hayek (para me restringir apenas à esses nomes) sempre acreditaram em um Estado que fosse reduzido no seu escopo de ação, mas forte institucionalmente. Foi Locke quem trouxe para o liberalismo a legitimidade do governo atrelada à sua capacidade de resguardar os direitos naturais à vida, à liberdade e à propriedade. Surgiu com o inglês a ideia de que a atuação governamental deveria ser sólida e limitada apenas ao que fosse mais necessário.
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Com Adam Smith, fomos alertados dos perigos de instituições serem capturadas pelo interesse individual das elites nacionais. A Riqueza das Nações nos alerta dos riscos de algo que aconteceu e ainda acontece no Brasil: o enfraquecimento de governos para a proteção de setores ineficientes da economia.
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Stuart Mill, influenciado por Tocqueville, reforçou a importância de defendermos a democracia liberal dos seus pontos fracos. Os indivíduos deveriam manter a sua autonomia protegida da possibilidade de uma maioria temporária dominar a esfera pública da sociedade. O utilitarista, que se destacou pela defesa do sufrágio feminino, não ignorou que um Estado mínimo é fundamental para garantir que as vozes dissidentes fossem escutadas, ainda que minoritárias.
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A defesa de um Estado atuante nas horas certas foi feita por Friedman e Hayek. Ambos pensaram em soluções modernas para a proteção daqueles que são “pobres de tão pretos e pretos de tão pobres”. Afinal, estabelecida a democracia liberal e os direitos individuais, era a hora de garantir que as liberdades sociais e políticas fossem exercidas por todos.
Veio de Friedman o embrião de programas como o Bolsa Família (formulado pelo também liberal Ricardo Paes de Barros), um referencial mundial no combate à pobreza. O imposto negativo era uma medida simples, mas revolucionária: aqueles que recebessem abaixo de uma faixa de renda deveriam receber subsídios do governo, garantindo que as suas necessidades mínimas fossem sanadas.
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Hayek sempre defendeu um sistema de proteção social que garantisse a sobrevivência dos menos afortunados. Para o austríaco, a existência de sociedades prósperas sem um cobertor que garantisse a autonomia dos vulneráveis era injustificável. Os mais pobres apenas teriam a sua autonomia garantida caso fossem capazes de ter o mínimo de dignidade.
Mas, de todos os autores clássicos da tradição liberal, John Rawls é o que se destaca pela maior defesa de um liberalismo capaz de resguardar os mais pobres e dar a todos os membros de uma sociedade condições básicas de autonomia. Uma teoria da justiça retomou o contratualismo para o pensamento liberal e trouxe um novo modelo de contrato social liberal.
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Instituições públicas capazes de promover a justiça social, para Rawls, só existem na medida em que são capazes de entregar a todos um conjunto básico de direitos políticos, liberdades individuais e renda. A justiça como equidade, nesse sentido, é um exercício de olhar ao próximo. Sem perder o foco nos fundamentos básicos do liberalismo, permitiu que a tradição abandonasse o utilitarismo e se tornasse mais solidária.
Uma leitura cuidadosa do cânone, porém, notará que nenhum autor propôs ideias que fossem aplicáveis especificamente em momentos de pandemia. Até mesmo Keynes, o lord do Liberalismo inglês, defendeu soluções que não seriam aplicáveis agora: o economista era a favor de mecanismos que possam ser utilizados quando há oferta, mas nenhuma demanda. Não é o nosso caso agora.
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Pandemias são momentos em que mais precisamos de um Estado que seja mínimo nos seus deveres, mas forte o bastante para coordenar a sociedade civil. A saída da Covid-19 se dará pela cooperação entre poder público, iniciativa privada e grupos sociais organizados. Mas isso só é possível na existência de lideranças nos três poderes capazes de garantir que a tríade de ação estatal, que sempre foi defendida por liberais, possa se manter funcional.
Infelizmente, não é o caso do Brasil. Historicamente, entregamos a menor ação estatal para os mais pobres e o grosso do orçamento público para os mais ricos. Destacamo-nos por nossa inabilidade de resguardar os direitos de cidadania básicos.
Entramos nessa luta enfraquecidos. Temos um governo cronicamente debilitado para agir a favor do bem comum. Para piorar, o nosso presidente insiste em tomar medidas que enfraquecem as instituições e a sua habilidade de coordenar ações com governadores e prefeitos. O cenário só não é pior pois Bolsonaro não consegue seguir o exemplo de Viktor Orbán, que se aproveitou do momento para ganhar poderes virtualmente ilimitados.
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A saída, ironicamente, se dará por aqueles que muitos liberais apontam como os melhores mecanismos para transformar a nossa realidade. Caberá à sociedade civil, as instituições públicas e os mecanismos de cooperação internacional pensar um plano de ação forte e robusto. Esperar por um presidente que sempre negou os valores da modernidade é torcer por um futuro semelhante ao presente da Itália.
Ao defender a liberdade de expressão, Stuart Mill afirmou que censores sempre se arrogam infalibilidade. Se estivesse vivo, o liberal provavelmente utilizaria uma frase semelhante para os que se aproveitam do momento para dizer que o liberalismo está prestes a morrer e que as soluções possíveis não são compatíveis com a tradição da liberdade.
Os ideais que manterão as bases da nossa sociedade intactas durante e após a pandemia da Covid-19 não são, necessariamente, os do liberalismo. Mas certamente serão aqueles que fundaram as correntes de pensamento modernas. Como é o caso do liberalismo, que não traz respostas prontas para tudo, mas sempre acreditou na habilidade de cidadãos se unirem para, juntos, vencerem os seus maiores desafios.
A saída da crise se dá apenas pela colaboração solidária entre povos. Precisamos buscar soluções que sejam capazes de proteger os mais vulneráveis. Juntos, também, devemos lutar para impedir retrocessos civilizatórios e o enfraquecimento das instituições democráticas (e liberais) que moldaram as sociedades contemporâneas.
A humanidade vencerá na medida em que for capaz de utilizar os mecanismos de cooperação, defendidos e criados por liberais, para superar a Covid-19 nos próximos meses. Perderemos, porém, se utilizarmos essa oportunidade para discutir qual ideologia que pensou as melhores respostas para pandemias. É pouco provável que alguma já tenha feito isso. Mas certamente é de interesse de reacionários que o momento seja utilizado para acabar com a liberdade de todos, inclusive aqueles que não são liberais.
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