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Simone Weil e as causas da liberdade e da opressão social

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Simone Weil: filósofa, mística, pensadora, guerrilheira, trabalhadora, ativista política? Para Charles de Gaulle, “louca”. Para Albert Camus, “o único grande espírito de nosso tempo”. Dos círculos acadêmicos aos chãos das fábricas, do gabinete à linha de frente na Resistência da Guerra Civil Espanhola, sempre em exílio, em seu violento pacifismo, em sua busca pela verdade e pelo bem, em absoluta solidão.

Neste ano de 2020, a Editora Âyiné publicará, na tradução de Pedro Fonseca, suas Reflexões sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social.

Em uma parceria com a Âyiné, o Estado da Arte traz hoje em primeira mão a Introdução de Simone Weil às Reflexões, um ensaio que adianta muito do que seria central em toda sua vida: a filosofia como atividade e uma radical rejeição — aos clichês dos meios acadêmicos convencionais, aos slogans que degradam a linguagem, à opressão que marca a injustiça que desumaniza.

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Simone Weil

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Introdução às Reflexões sobre as Causas da Liberdade e da Opressão Social

O período presente é uma daquelas épocas nas quais tudo o que normalmente parece constituir uma razão para viver se desvanece; em que, sob pena de se perder na confusão ou na inconsciência, devemos questionar tudo. Apenas uma parte do mal que sofremos pode ser atribuída ao triunfo dos movimentos autoritários e nacionalistas que destroem um pouco, em todos os lugares, a esperança que as pessoas honestas haviam depositado na democracia e no pacifismo; ele é bem mais profundo e vasto. Podemos nos perguntar se existe um âmbito da vida pública ou privada em que as próprias fontes da atividade e da esperança não estejam envenenadas pelas condições nas quais vivemos. Já não se realiza mais o trabalho com a consciência orgulhosa de que se é útil, mas sim com o sentimento humilhante e angustiante de se possuir um privilégio outorgado por um favor passageiro da sorte, um privilégio do qual muitos seres humanos são excluídos pelo próprio fato de que outros desfrutam dele; ou seja, uma vaga. Mesmo os empresários perderam essa crença ingênua em um avanço econômico ilimitado que lhes fazia imaginar ter uma missão. O progresso técnico parece ter fracassado, já que em lugar do bem-estar trouxe às massas apenas a miséria física e moral na qual as vemos se debater. Além disso, as inovações técnicas já não são mais admitidas em nenhum lugar, salvo nas indústrias de guerra. Quanto ao progresso científico, não se percebe de que serve empilhar mais conhecimento sobre um amontoado já muito vasto para poder ser abraçado pelo próprio pensamento dos especialistas; e a experiência mostra que nossos antepassados se equivocaram acreditando na difusão das luzes, já que só se pode divulgar entre as massas uma miserável caricatura da cultura científica moderna, caricatura que, longe de lhes tornar capazes de julgar, os acostuma à credulidade. A própria arte sofre o contragolpe da confusão geral, que a priva em parte de seu público, e justamente com isso mina a inspiração. Enfim, a vida familiar tornou-se apenas ansiedade, a partir do momento em que a sociedade se fechou aos jovens. A própria geração para a qual a espera febril do porvir constitui a vida inteira vegeta, no mundo inteiro, com a consciência de não ter qualquer futuro, de que para ela não há lugar em nosso universo. Por outro lado, esse mal, nos dias atuais, se é mais agudo para os jovens, é comum a toda a humanidade. Vivemos em uma época privada de futuro. A expectativa do que virá já não é mais esperança, mas angústia.

(Reprodução)

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Todavia, desde 1789 há uma palavra mágica que contém em si todo futuro imaginável, e nunca é tão rica de esperanças como nas situações desesperadas; é a palavra revolução. E há algum tempo ela é pronunciada com frequência. Deveríamos estar, assim parece, em pleno período revolucionário; porém, tudo se passa como se o movimento revolucionário decaísse com o próprio regime que aspira destruir. Há mais de um século, cada geração de revolucionários se revezava, à espera de uma revolução próxima; hoje essa esperança perdeu tudo aquilo que lhe poderia servir de suporte. Nem no regime que surgiu da Revolução de Outubro, nem nas duas Internacionais, nem nos partidos socialistas ou comunistas independentes, nem nos sindicatos, nem nas organizações anarquistas, nem nos pequenos agrupamentos de jovens que surgiram em grande quantidade há algum tempo pode-se encontrar algo de vigoroso, saudável ou puro; já faz muito tempo que a classe operária não dá qualquer sinal de espontaneidade com a qual contava Rosa Luxemburgo, e que sempre, por sua vez, quando se manifestou, foi prontamente afogada no sangue; as classes médias são seduzidas pela revolução apenas quando ela é evocada, para fins demagógicos, por aprendizes de ditador. Repete-se com frequência que a situação é objetivamente revolucionária e que falta apenas o “fator subjetivo”; como se a carência total da única força que poderia transformar o regime não fosse um caráter objetivo da situação atual, e cujas raízes deveriam ser procuradas na estrutura de nossa sociedade! Por isso, o primeiro dever que o período presente nos impõe é o de termos suficiente coragem intelectual para nos perguntar se o termo revolução é algo mais do que uma palavra, se ele tem um conteúdo preciso, se não é simplesmente uma das inúmeras mentiras suscitadas pelo regime capitalista em seu desenvolvimento e que a crise atual nos ajuda a dissipar. Essa questão parece ímpia, se pensarmos em todos os seres nobres e puros que sacrificaram tudo por essa palavra, inclusive a vida. Mas apenas os sacerdotes podem pretender medir o valor de uma ideia pela quantidade de sangue que ela fez escorrer. Quem poderá dizer se os revolucionários não derramaram o próprio sangue em vão, como aqueles gregos e troianos do poeta que, enganados por uma falsa aparência, lutaram por dez anos ao redor da sombra de Helena?

A Troia em chamas de Johann Georg Trautmann, c. 1759-62

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Weil, aos 13 anos de idade

Nossos profundos agradecimentos à Editora Âyiné, personificada aqui por Pedro Fonseca, diretor editorial.

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