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José Eduardo Faria: A saúde pública entre o Estado e o mercado

por José Eduardo Faria

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O socialismo morreu e a social democracia vai no mesmo caminho – lia-se nos jornais, revistas e livros no final da década de 1980. Foram anos marcados pela tensão gerada por uma crise de governabilidade e uma crise de legitimidade na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, pela queda do Muro de Berlim, do desmanche do império soviético e pelo ingresso de países do leste europeu na economia de mercado. Foram anos em que os efeitos da crise do petróleo da década anterior corroeram as virtualidades das políticas keynesianas do pós-guerra.

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A Queda do Muro de Berlim (Acervo do Senado Alemão)

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Quem guardou recortes de artigos de jornais, revistas e livros publicados naquela época tem, em seus arquivos, dezenas de ensaios, artigos e editoriais a respeito dos funerais do Estado planejador e indutor. Textos em que o Estado era descartado como agente normativo, regulador e fiscalizador das atividades econômicas. Narrativas que, invocando as virtudes do liberalismo e glorificando o jogo de mercado, justificavam a redução da atuação do Estado a funções meramente subsidiárias e excepcionais. Entre outros argumentos, essas narrativas enfatizavam que as pessoas deveriam ver num mercado livre e desregulamentado a melhor forma de suprir suas necessidades e de buscar oportunidades. Apontavam, também, que os critérios de sucesso em determinados pela riqueza que cada um consegue cumular durante a vida, e não por princípios de honradez, dignidade e solidariedade. Entreabriam, com esses argumentos, uma racionalidade instrumental que levaria à consagração dos mais espertos, inteligentes, ágeis, eficientes e preparados.

Esse tipo de visão de mundo, que no limite culmina numa espécie de darwinismo social, está impregnado nas sucessivas MPs baixadas pelo atual governo desde janeiro de 2019, por orientação de uma equipe econômica que se diz liberal,  mas que descarta o lado político do conceito de liberalismo, privilegiando apenas seus aspectos econômicos O lado político esquecido engloba liberdades públicas e direito de propriedade, garantias fundamentais e respeito aos contratos, o devido processo legal e uma trama de conceitos e técnicas para a segurança das práticas comerciais e para a defesa da concorrência. Já o lado econômico envolve a ideia de mercado como uma complexa e quase infinita rede de trocas, com base num sistema livre de preços para os consumidores e ampla liberdade de ação para os empreendedores, que arriscam capital para destinar recursos.

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Herbert Spencer, quem cunhou a expressão “survival of the fittest”

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A vulgata liberal subjacente às MPs por inspiração dessa equipe, contudo, vai além, classificando como perniciosa toda intervenção estatal, considerando natural a transformação de obrigações públicas em negócios privados e enfatizando a autossuficiência dos cidadãos. Desse modo, quando a equipe econômica despreza o lado político do conceito de liberalismo, o que sobra é a crença de que basta retirar o Estado da regulação econômica e equilibrar as contas públicas para que a confiança dos investidores seja restabelecida e a economia volta a crescer. O que resta é a fé religiosa baseada em juízos éticos e em ideias como a de desresponsabilização dos agentes econômicos, de  autorregulação das cadeias produtivas e de hiper-responsabilização dos indivíduos por seu próprio destino, independentemente de sua origem social, de seu nível de escolaridade, de sua ocupação profissional e de suas condições de saúde.

Com o desprezo do lado político do conceito de liberalismo, nessa vulgata libertária, fica de lado, por exemplo, uma ideia civilizatória fundamental – aquela segundo a qual pertencer a uma ordem política e jurídica é desfrutar do reconhecimento da condição humana. Também são relativizadas e até esquecidas a importância do planejamento e a noção de estratégia, bem como a ideia de que políticas públicas e gestão privadas podem ter objetivos e valores distintos. Acima de tudo, por causa da confusão da equipe econômica entre juízos científicos e juízos políticos e até ideológicos, que não têm embasamento científico a partir do raciocínio econômico, também são ignorados dois relevantes fatos históricos. Por um lado, o fato de que uma economia de mercado precisa, para funcionar bem, de algo mais do que o interesse de cada um. Por outro, o fato de que, quando o mercado entra em crise e o Estado se revela incapaz de adotar políticas anticíclicas, a democracia se torna intolerante e o populismo daí decorrente tende a derivar para o autoritarismo.

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John Maynard Keynes, em caricatura de David Low (1934)

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Na linha de um libertarismo rasteiro, que confunde governar com promover cortes, essa vulgata do liberalismo tem levado a grandes equívocos entre nós. Um dos mais graves foi, em nome da maximização de uma visão de mundo fiscalista, o desmonte da administração direta e indireta por meio de um processo de privatizações e de desconstitucionalização e deslegalização de direitos, sem a preocupação paralela de forjar equivalentes funcionais a instituições compatíveis com os cenários de interdependência e policentrismo mundiais. Não menos importante, outro erro foi não entender que os laços das conexões globais acarretam problemas globais, como pandemias, podendo levar a colapsos sociais e, por tabela, a crises econômicas, com consequências inimagináveis. Os seguidores das cartilhas libertárias ou neoliberais não se conscientizaram de que o policentrismo decisório  se converteu em horizonte para a governança global, em cujo âmbito a ideia de multilateralidade não se refere apenas à geoestratégia militar e aos mercados financeiros, às tensões entre Estados Unidos e China, mas a todos os demais modos de relação entre atores, regulação de processos, negociação dos desafios e enfrentamento de crises.

Ao insistir na austeridade e nas privatizações, aceitando como natural a redução dos serviços públicos ao conceito de mercadorias negociáveis no jogo de mercado, os seguidores das vulgatas libertárias demoliram a máquina governamental e reduziram o alcance das funções essenciais das quais todos dependemos para assegurar a vida em face dos riscos devastadores causados pela Covid-19. Não acaso, alguns dos países europeus com maior número de vítimas fatais foram os que estavam com seus sistemas de saúde debilitados, entre outros motivos, por terem se convertido nas chamadas sociedades da austeridade no início da atual década.

Conscientes de que ao paralisar as cadeias globais de produção integradas por indústrias de distintos países conectadas na manufatura de um produto, a pandemia da Covid-19 apontou uma dos pontos frágeis da economia transterritorializada, muitos países já estão se preparando para substituir políticas fiscalistas por medidas social-democratas; para abandonar a concepção  libertária de Estados limitados a papéis subsidiários e excepcionais e optar pela concepção de Estados capazes de reconstruir o conceito de público, resgatar mecanismos de planejamento, definir noções de estratégia, propiciar estabilidade regulatória, de dar prioridade a investimentos sociais e de recolocar em termos mais responsáveis a questão da responsabilidade fiscal.

Submetido a um governo inepto, sem rumo e chefiado por um desequilibrado capitão reformado, o Brasil demorará para seguir esse caminho. E, pior, ainda terá de enfrentar o risco de novas aventuras populistas e bonapartistas. Por seu lado, a sociedade vai se dando conta da falta que faz uma eficiente estrutura de serviços públicos essenciais. Os cidadãos também vão se certificando da perversidade moral de uma desastrada fala do novo ministro da Saúde, feita em 2019, quando já deixara a atuação como médico oncologista para se tornar empresário financiado por um equity fund. Nessa fala, ele tratou da escolha entre a vida de um idoso ou de um jovem, pelos médicos, como um problema técnico e de caráter financeiro. Enfatizou critérios utilitários, sem levar em conta os direitos dos idosos assegurados pela Constituição, revelando não compreender que ética em saúde pública e a ética clínica são diferentes. Como professor de filosofia do direito, disciplina em que a relação entre lei e moral é central, e como neto de um médico sanitarista que dedicou sua vida à profilaxia da lepra e tuberculose na América Latina, tendo morrido pobre, fiquei chocado com a insensibilidade – ou será cinismo? – do autor dessa fala. Independentemente de minha indignação e da crescente consciência da sociedade sobre os motivos que a levaram não receber os serviços públicos essenciais de que necessitam, os libertários da equipe econômica continuam dando as cartas. O que explica a timidez, a morosidade, a tibieza e falta de criatividade da equipe econômica para tomar medidas que ajudem a evitar o pior – um colapso social.

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José Eduardo Faria (Acervo Estado)

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José Eduardo Faria

José Eduardo Faria é Professor Titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).