todavia

Meu anjo da guarda tem medo do escuro: poemas de Charles Simic

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Charles Simic nasceu em Belgrado, na Sérvia, em 1935, e vive nos Estados Unidos desde 1954. Um dos grandes nomes da poesia norte-americana, tem dezenas de livros de poemas e coletâneas de artigos e ensaios sobre literatura, volumes de memórias, além de traduções de poetas do Leste Europeu. É professor emérito de literatura americana e criação literária na Universidade de New Hampshire, onde leciona desde 1973.

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Charles Simic

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Em parceria com a editora todavia, trazemos aqui os dois poemas que abrem Meu anjo da guarda tem medo do escuro, antologia que reúne pela primeira vez no Brasil uma amostra do melhor de Simic. Com seleção e tradução do poeta Ricardo Rizzo (que também assina o posfácio), o volume mostra a variedade de tópicos abordados pelo autor: da inescrutabilidade da vida cotidiana a observações de caráter metafísico; de contos populares a casamento, guerra e vida urbana. Poeta de hoje tocado pela eternidade, Simic produz versos emocionantes e inesperados, precisos como poucos.

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(Reprodução: todavia)

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Penal Architecture

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School, prison, state orphanage,

I walked your gray hallways,

Stood in your darkest corners

With my face to the wall.

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The murderer sat me in front row.

A mad little Ophelia

Wrote the date on the Blackboard.

The executioner was my best friend.

He already wore black.

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Cracked, peeling walls

With every window barred,

Not even a naked lightbulb

For the boy left in the solitary

And the old master

Putting on his eyeglasses.

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In that room with its red sunsets,

It was eternity’s turn to speak,

So we listened breathlessly

Even though our hearts

Were made of stone.

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Arquitetura penal

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Escola, prisão, orfanato público,

Percorri seus corredores cinzentos

De pé nos cantos mais escuros

a cara contra a parede.

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O assassino sentou-se na fileira da frente.

Uma Ofelinha louca

Escreveu a data no quadro-negro.

O carrasco era meu melhor amigo.

Sempre de preto.

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Paredes fendidas, descascadas

Grades em todas as janelas

Sequer uma lâmpada

Para o menino na solitária

E o velho diretor

Põe os óculos.

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Naquele cômodo com seus poentes vermelhos,

Era a vez da eternidade falar,

E nós ouvíamos sem respirar

Embora nossos corações

Fossem feitos de pedra.

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To the One Tunneling

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Penitentiaries secured for the night,

Thousands lying awake in them,

As we too lie awake, love,

Straining to hear beyond the quiet.

The blurry whiteness at the ceiling

Of our darkened room like a sheet

Thrown over a body in the ice-cold morgue.

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Do you hear the one tunneling?

So faint a sound he makes

It could be your heartbeat or mine

In this wall we lean our heads against.

With our eyes now tightly shut

As if a jailer has stopped to peek

Through the small crack in our door.

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Ao que cava

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Penitenciárias vigiadas durante a noite,

Dentro delas milhares sem dormir,

Acordados como nós dois, amor,

Tentando ouvir além da quietude.

A brancura borrada no teto

Do nosso quarto escuro é como um lençol

Jogado sobre um corpo no necrotério gelado.

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Você consegue ouvir o sujeito cavando?

Faz um barulhinho tão miúdo

Podia ser o seu coração batendo ou o meu

Na parede onde recostamos, aqui atrás,

Com os nossos olhos agora bem fechados

Como se um guarda parasse para olhar

Pela pequena fresta ali na porta.

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My guardian angel is afraid of the dark. He pretends he’s not, sends me ahead, tells me he’ll be along in a moment. Pretty soon I can’t see a thing. “This must be the darkest corner of heaven,” someone whispers behind my back. It turns out her guardian angel is missing too. “It’s an outrage,” I tell her. “The dirty little cowards leaving us like this alone.” And of course, fo all we know, one of us may be an old man on his deathbed and the other one a sleepy little girl with glasses.

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Meu anjo da guarda tem medo do escuro. Finge não ter, me manda ir na frente, diz que me alcança num instante. Pouco depois não consigo ver mais nada. “Aqui deve ser o lugar mais escuro do paraíso”, ouço alguém sussurras às minhas costas. O anjo da guarda dela também sumiu. “É um absurdo”, digo a ela. “Esses sacaninhas covardes nos deixam aqui sozinhos”, ela sussurra. E é claro, até onde sabemos, eu posso já ter uns cem anos, e ela é só uma garotinha sonolenta de óculos.

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