FilosofiaHistória

Werner Jaeger e um breve olhar sobre o legado cultural e espiritual do Ocidente:

por Catarina Rochamonte 

“A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico.” (Bento XIV – Discurso no Parlamento Alemão, 2011)

Fala-se muito agora de identidade nacional e, com isso, crescem os movimentos nacionalistas em defesa de suas fronteiras, mas mais importante que as identidades assim referidas é a identidade de sentido de um progresso intelectual e moral que nos une, a nós ocidentais, desde a Grécia Antiga. Afirma Werner Jaeger, na introdução do seu monumental livro Paideia: a formação do homem grego, que “a nossa história – na sua mais profunda unidade – ‘começa’ com a aparição dos Gregos.” Há uma unidade de sentido entre todos os povos ocidentais e a Antiguidade Clássica, uma história “que se fundamenta numa união espiritual viva e ativa e na comunidade de um destino […] uma comunidade de ideais e de formas sociais e espirituais que se desenvolvem e crescem independentes das múltiplas interrupções e mudanças.”

Nesse contexto em que nos inserimos, um indivíduo se projeta como ponto de ruptura e modelagem da história. Chama-se Jesus. Sua mensagem, sabemos, dividiu a história secular traduzindo assim a exponencial curva que se verifica a partir dele em termos de moralidade e dignificação do ser humano. O significado histórico, portanto, do advento do Cristo é o que precisaria primeiramente ser retomado no que tange às tentativas de resgatar a nossa própria imagem perante nós mesmos, o que em nada, por óbvio, diminuiria o significado eterno da Sua palavra. Daí a importância da relação explicitada por Jaeger na Paideia nos seguintes termos:

“O início da história grega surge como princípio de uma valoração nova do Homem, a qual não se afasta muito das ideias difundidas pelo Cristianismo sobre o valor infinito de cada alma humana nem do ideal de autonomia espiritual que desde o Renascimento se reclama para cada indivíduo. E teria sido possível a aspiração do indivíduo ao valor máximo que os tempos modernos lhe reconhecem, sem o sentimento grego da dignidade humana? É historicamente indiscutível que foi a partir do momento em que os gregos situaram o problema da individualidade no cimo do seu desenvolvimento filosófico que principiou a história da personalidade europeia. Roma e o cristianismo agiram sobre ela”.

Percorrer com lucidez a trajetória da nossa civilização, compendiando as conquistas intelectuais, morais e espirituais das quais somos partícipes, servir-nos-á de escudo protetor contra os discursos dissolventes que grassam no interior da nossa própria cultura; discursos esses que possibilitam ao movimento fundamentalista do Islã o assenhoramento moral da estrutura espiritual que ficará vazia quando o niilismo ocidental atingir – se é que já não atingiu – o seu ápice.

É necessário reconquistar paulatinamente a nossa própria história das mãos enganadoras daqueles que viram na construção do ideal do Ocidente apenas uma concessão ao desvario de mentes religiosas e fanáticas, pois, na verdade, fanáticos são aqueles que tecendo intelectualmente teorias supostamente morais, desobrigaram-se da moral individual que sustenta a cada um de nós e a qualquer sociedade minimamente desenvolvida. Falamos aqui do materialismo histórico, do marxismo e suas mil facetas que não escondem, porém, o solo débil de onde provêm: a carência de uma religiosidade autêntica e de uma espiritualização sincera por meio da qual qualquer indivíduo poderá dar-se por capaz de sustentar em si a moralidade negada por aqueles que se julgam capazes de construir – com tal negação – um mundo mais justo e moral.

Esse paradoxo do pensamento socialista precisa ser sempre lembrado e explicitado. Agora, porém, sentimos a necessidade de reaver o terreno perdido da interpretação histórica e mostrar que há, que sempre houve, uma real aliança entre a civilização ocidental antiga e a atual, mesmo que essa linha tenha se perdido no tempo entre tantos despautérios teóricos. Sendo assim, uma linha de pesquisa para aquele que busca não apenas sua identidade nacional, mas também a sua identidade humana, seria o reestabelecimento dos vínculos entre o humanismo grego e o humanismo moderno, sustentando assim a pessoa humana na sua transcendência e valor, por intermédio do resgate da história da construção desse valor.

Esse valor e essa dignidade, essa humanidade ideal está, sem dúvida, presente nos pressupostos jurídicos do Ocidente. Eis o porquê de insistirmos nas relações entre Cristianismo e democracia – não no sentido demagógico e deturpado que foi difundido pela Teologia da Libertação, mas no sentido mais sutil e profundo da relação entre a pregação do Evangelho e o ideal moderno de justiça que, sendo moderno, carrega em si a sua trajetória imensa de lutas e de conquistas, mas que sendo eterno traz em si a palavra perene  do Cristo, que ressoa em nossos corações.

O ideal grego de beleza materializado.

Sócrates e a Paideia

Paideia é uma palavra grega que não encontra em outra língua um termo equivalente que o esgote, podendo, entretanto, na sua abrangência, aproximar-se de termos como educação, civilização, cultura, literatura, tradição. A Paideia grega nos fala, pois, de um ideal de cultura como princípio formativo e do ideal de formação de um tipo elevado de homem. A história da Paideia é, então, a história das transformações dos valores na Grécia, o que equivale ao processo histórico e espiritual por meio do qual os gregos elaboraram o seu ideal de humanidade.

Os gregos aspiravam à forma, ao modelo, à ideia. Educadores, artistas, poetas, legisladores e filósofos aspiravam à forma humana ideal. Normas que regiam a vida social e individual eram derivadas da percepção das leis profundas que governam a natureza e o processo de formação da juventude se dava por meio da apresentação ao espírito da imagem do homem tal como ele deveria ser. Mas o ideal grego de homem era dinâmico e não estático, tendo sido capaz de acolher progressivamente as transformações enriquecedoras do seu desenvolvimento histórico. É assim que de um conceito de arete (excelência, virtude) baseado no heroísmo, na destreza e na força e de um ideal agonístico em que se busca ser sempre o melhor e distinguir-se dos demais, passa-se a um ideal mais refinado do ponto de vista espiritual, quando a justiça passa a ser considerada a arete por excelência.

Relevo grego com cena de escola.

Desde a constituição da Polis já pairava entre os cidadãos um sentimento nobre de elevada estima pelo direito e de amor pela justiça. Se na Grécia cantada por Homero a juventude se modelava pelo exemplo do herói Aquiles, nos tempos áureos da democracia ateniense buscava-se formar antes a juventude no ideal político. Ocorre que, no meio desse processo da formação cultural grega, apareceu um indivíduo cujo discurso e exemplo provocaram uma verdadeira revolução na concepção de saber, que será determinante na história da filosofia e na cultura ocidental de modo geral. Sócrates – na opinião de Werner Jaeger, “o mais espantoso fenômeno pedagógico da história do Ocidente”- afirmará sua fé no valor infinito da alma de cada homem, fazendo com que a Grécia se defronte com uma nova força de autoafirmação, com a inversão de valores que converte a força heroica em força interior, indo do heroísmo externo à conquista de si.

Se o mais específico do homem é sua alma imortal, então é no cuidado dessa alma que a Paideia socrática encontrará seu fundamento. E essa Paideia é a exigência de uma vida superior, uma vida cuja condição é posta em questão sob a perspectiva de sua adequação ou não aos bens supremos da vida. Não se trata mais aqui de oferecer uma cultura superior para a formação do estadista, como buscavam os sofistas, mas de oferecer ao indivíduo um remédio contra a ignorância de si mesmo e da verdadeira finalidade da vida, que é melhorar a alma, tornando-a mais bela e apta para o conhecimento do Bem. Essa nova ordenação de valores, pregada e vivida por Sócrates, será sistematizada ou fundamentada metafisicamente nas obras de Platão, por cujo ideal se dará a assimilação da filosofia grega por parte da religião cristã.

Da Paideia grega ao humanismo cristão

A civilização grega influenciou profundamente a tradição cristã, a ponto de serem a cultura e a filosofia gregas elementos determinantes da história do Cristianismo. O Cristianismo emerge do Judaísmo e os judeus daquele tempo já estavam helenizados. O próprio Paulo, na sua atividade missionária, já toma a tradição filosófica grega como uma base comum para o diálogo, embora não se demore em especulações teóricas. O uso do idioma grego pelos cristãos já traz consigo uma série de conceitos e categorias intelectuais que serão gradualmente assimilados e desenvolvidos pelos apologistas.

Com o objetivo de advogarem em defesa de sua religião, em um contexto de preconceito e perseguição sofridos pelos primeiros cristãos, desenvolveu-se uma literatura apologética voltada não para as massas – as quais eram antes conquistadas pela simplicidade da mensagem evangélica e pela ação caritativa – mas para aqueles que detinham poder e cultura, ou seja, os governantes do Império Romano. Nessas obras apologéticas, como, por exemplo, as de São Justino mártir, encontram-se várias referências a Sócrates e Platão. Pressupondo uma espécie de plano pedagógico da providência divina, passa-se a considerar ter havido em Sócrates uma antecipação do Logos que encarnara no Cristo. É, pois, de fundamental importância para a história do Cristianismo a fusão conceitual entre a noção grega deLogose o Filho de Deus.

O Sócrates de J. L. David.

Noção complexa desde sua formulação na filosofia grega, o Logos é apresentado pelo pré-socrático Heráclito de Éfeso como o fogo que regula a transformação das coisas e pelos estoicos como princípio e causa divina do mundo. Antes de sua assimilação no interior do Cristianismo, já o filósofo judeu Fílon de Alexandria havia tentado conciliar com o conteúdo bíblico essa noção fundamental na tradição filosófica do Ocidente. De fato, “há um remoto vestígio semítico no Logos: os últimos livros do Antigo Testamento e a literatura judia apócrifa personificam mais ou menos a Palavra criadora, a Sabedoria, o Nome de Iavé ou ainda a Lei revelada: noções por vezes muito próximas do Logos grego.[1]” Fílon de Alexandria reunira, pois, a tradição grega e a tradição semítica por meio de sua doutrina do Logos, que ele define, dentre outros modos, como verbo imanente à criação e que intercede de algum modo por ela.

A despeito do modo impressionante como o judeu Fílon fala do Logos, atribuindo-lhe quase um ser concreto para além de ser um princípio abstrato, apenas no Evangelho de João o Logos dos gregos é associado diretamente ao tema dos judeus: o Logos é o messias; é uma pessoa verdadeira. O ser criador e iluminador de todo homem vindo ao mundo seria Jesus, que padeceu sob Pôncio Pilatos. É, pois, como dizíamos, com base na doutrina do Logos que São Justino mártir irá interpretar o parentesco entre aspectos das escrituras judaicas e da filosofia grega. A consequência de sua interpretação é que tudo o que fora dito de verdadeiro e bom na história seria reintegrado pelo cristianismo, estabelecendo-se, desse modo, uma relação de continuidade entre o humanismo grego e o humanismo cristão.[2]

Jan Gossaert. Cristo entre a Virgem e São João Batista.

Mas se, para Justino, o cristianismo era a filosofia absoluta e sua autoafirmação dependia da assimilação da Paideia grega, para o apologista Taciano tratava-se de uma fé religiosa que deveria se auto afirmar como culto bárbaro sem confundir-se com filosofia. Taciano representou assim um movimento de resistência à helenização do oriente, helenização essa iniciada pelas conquistas de Alexandre Magno e que tornou possível que o cristianismo se tornasse posteriormente uma força maior no próprio ocidente do que no oriente, onde surgiu. A história nos mostrará muitos desses momentos singulares em que se cruzaram civilizações como se um ideal de humanidade precisasse se afirmar para além das fronteiras e culturas.

A despeito do anti-helenismo de Taciano, o que se dá efetivamente é um gradual e crescente processo de adaptação mútua entre a Igreja cristã e a cultura grega clássica. Continuamente sob os ataques daqueles que tentavam escarnecer ou desacreditar a revelação cristã, a Igreja constituiu uma teologia cuja configuração reflete desde suas origens uma síntese bastante complexa entre a Paideia grega e a fé cristã. Na teologia feita em Alexandria uniam-se, pois, dois sistemas universais – o que Jaeger interpreta como sendo o reconhecimento de uma unidade final, de um núcleo de ideias comuns, que seriam as ideias humanistas.

O cristianismo buscará, a partir de então, na tradição grega a possibilidade de fundamentar a sua própria universalidade. É assim que, com muita erudição, a especulação teológica dos primeiros séculos cristãos vai utilizando para seus propósitos e subsumindo na sua visão de mundo as teorias de Platão e outros filósofos que se tornam doravante aliados na fundamentação das verdades reveladas, concretizando, principalmente com as obras de Orígenes e de Clemente de Alexandria, a conversão da paidéia grega em paidéia Cristã, que tem em Jesus o grande mestre e modelo em quem se encarnara oLogos divino. É assim que a liderança espiritual da doutrina cristã obtida por meio do diálogo profícuo com o que havia de mais espiritual na filosofia grega fincará as bases de uma nova civilização, a civilização cristã que, como fica claro após o exposto, é devedora da filosofia clássica.

Para Orígenes, o Cristianismo será o maior poder educativo da história, a paideia da humanidade, sendo Cristo o coroamento de uma série de passos cujo objetivo era a elevação intelectual, moral e espiritual do homem. Reconhecendo na paideia socrático–platônica o ideia central da Grécia, a teologia de Orígenes faculta à religião nascente a possibilidade de oferecer ao mundo algo universal, algo a mais do que poderia oferecer uma seita religiosa como outras tantas a proliferarem na época.

Platão havia superado o humanismo dos sofistas. Com ele, a famosa sentença de Protágoras é invertida e Deus passa a ser a medida – devendo nisso estar fundamentada a educação, cujos princípios não seriam, portanto, relativos. Para Orígenes, a paideia é o cumprimento gradual da providência divina que culmina com Cristo, que traz para a realidade tais ideais sublimes e é o modelo e mestre perfeito para a humanidade.

Nas suas conferências Early Christianity and Greek Paideia, ministradas na Universidade de Harvard, em 1960, e que foram aqui brevemente expostas, Werner Jaeger expôs o surgimento do humanismo cristão e suas relações com o humanismo grego. Na conclusão das suas preleções, Jaeger chama a atenção para algo que não havia ainda sido estudado de modo a fazer jus à importância do fenômeno. Trata-se da influência das obras dos padres gregos no pensamento renascentista, italiano e europeu.

São Gregório de Nissa retratado na tradição ortodoxa.

São Gregório de Nissa, para quem a paideia do cristianismo era a Imitatio Christi, transferiu suas ideias para a o movimento ascético que se originou na sua época na Ásia menor. Da Capadócia, pátria de Gregório de Nissa, essas ideias se estenderam à Síria e à Mesopotâmia, tendo sido recolhidas por místicos maometanos e pelo Ocidente latino. Jaeger nos lembra que, após a queda de Constantinopla, em 1453, os gregos que fugiram levaram consigo para a Itália a tradição literária do oriente bizantino, destacando-se aí a obra dos padres gregos. O que o erudito helenista afirma é que, em última análise, o humanismo cristão de Erasmo de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”, o “pai da civilização moderna” remete aos padres gregos e que “desde o renascimento há uma linha que nos leva diretamente até o humanismo cristãos dos padres do século IV e a sua ideia da dignidade do homem e de sua reforma e renascimento pelo espírito[3]” 

O legado árabe e sua recepção no mundo cristão

Quando o cristianismo passou a ser a religião oficial do Império Romano, no século IV, a partir do Édito de Tessalônica, templos pagãos foram destruídos, incluindo o grande templo de Serapis e a biblioteca de Alexandria. Isso provocou a fuga para o Oriente de alguns sábios, que levaram consigo boa parte do patrimônio cultural grego. Um século e meio depois, com o fechamento da academia de Atenas pelo édito de Justiniano, uma nova leva de filósofos dirigiu-se ao Oriente, mais especificamente para Síria e Mesopotâmia. Para lá também fugiram monges cristãos que se opunham aos dogmas da Igreja ortodoxa.  Foram então erigidos mosteiros onde ficaram conservadas as traduções em siríaco de várias obras gregas que, posteriormente, serviriam de base para as primeiras traduções árabes das mesmas.

O pensamento árabe se consolidou lentamente, tendo por base o corpo de doutrinas representado pelo Alcorão e a projeção histórica desse texto sagrado na cultura e nas concepções éticas e jurídicas. Com a expansão do Islamismo, veio a necessidade de justificação dessa visão de mundo frente a outras culturas e o grau de sofisticação necessário para essa empreitada racional foi encontrado justamente na filosofia grega. Em meados do século VIII, a dinastia abássida abraçou a causa do conhecimento e o Islã viveu uma espécie de época de ouro na qual eruditos muçulmanos tentaram sintetizar conhecimentos herdados de outras civilizações, empenhando-se particularmente em importar a filosofia e a ciência grega para a cultura islâmica, traduzindo obras importantíssimas como foi o caso das obras de Aristóteles.

Por trás desse engajamento intelectual, porém, havia causas eminentemente políticas, o que explica a participação ativa do Estado nessa empreitada. Os califas sustentavam determinadas concepções teológicas e tinham ademais o interesse em competir com a cultura persa e bizantina pela hegemonia cultural. A despeito dessa potencial submissão da teologia à política, a introdução da filosofia grega no pensamento árabe provoca fortes reações que não deixam de ter certa analogia com as primeiras reações suscitadas pelo contato da revelação cristã com o racionalismo grego nos primórdios do cristianismo.

Também no mundo islâmico, a filosofia será considerada ímpia e estrangeira por alguns, que tentarão bani-la para afirmar tão somente a fé na verdade revelada pelo Corão, enquanto outros submeterão os dados da revelação ao exame crítico e minucioso da reflexão filosófica. Se aceitarmos a interpretação que a escritora e ex-muçulmana Ayaan Hirsi Ali faz desse momento histórico no seu livro Herege, afirmaremos que o mundo islâmico não soube aproveitar tão bem a oportunidade que teve para incorporar as ideias da filosofia grega. Segundo Hirsi Ali, do século VIII ao X “floresceu em Bagdá a escola de pensamento islâmico Mu´tazila, que proclamava a dignidade da razão e propunha que a doutrina islâmica fosse aberta à interpretação contemporânea.” Essa perspectiva, porém, que poderia abrir um espaço para a inserção de certa dose de racionalidade na religião islâmica foi, no entanto, “fragorosamente derrotada pela escola Ash´ari […] que argumentou […] que o Alcorão era a palavra de Deus perfeita e imutável.[4]”

Na história do cristianismo, lembremos, tivemos o anti-helenismo de Taciano e Tertuliano sobrepujado por Clemente de Alexandria, Orígenes, pelos padres capadócios, pela bela síntese agostiniana entre fé e razão expressa na célebre fórmula Credo ut intelligam; intelligo ut credam, e daí em diante. No Islamismo, porém, a vitória parece que coube aos fideístas. De todo modo, as origens daquilo que se pode chamar de filosofia árabe ou islâmica se relaciona diretamente com as primeiras traduções em árabe das obras dos pensadores gregos, seja a partir do siríaco, seja a partir do grego mesmo. Como principais representante da filosofia árabe podemos citar Al Kindi (séc. IX), Alfarabi (séc. IX), Avicena (séc. XI), Al Gazali (séc. XI), Averróis (séc. XII).

Sócrates e seus discípulos, ilustração de ‘Kitab Mukhtar al-Hikam wa-Mahasin.

Durante a Idade Média, todos os âmbitos do pensamento muçulmano foram influenciados pela filosofia de Aristóteles, seja entre gramáticos e juristas, seja entre filólogos e filósofos. Se o mundo cristão inicia com desconfiança sua relação intelectual com Aristóteles para só posteriormente – após os grandes esforços de Tomás de Aquino – reverenciá-lo e assumir o seu legado, entre os muçulmanos o processo deu-se de forma inversa: Aristóteles é de início aceito, cultivado e explorado exaustivamente. Nos séculos IX e X todas as obras autênticas de Aristóteles já tinham sido traduzidas para o árabe e comentadas com grande entusiasmo. Apenas no século XI começa a se desenhar no mundo árabe certa reação a ele.

O papel da filosofia grega na formação do pensamento filosófico árabe é imensa. Da mesma forma, é indiscutível a importância da transmissão, pelos árabes, desse pensamento grego de volta para o mundo cristão. Os textos traduzidos pelos eruditos árabes foram estudados, comentados e sumarizados.  É claro que nessas exegeses profundas os filósofos árabes chegaram a conclusões e desdobramentos que não podem ser reduzidas ao que já tinha sido dito pelos próprios gregos. A importância de se reconhecer isso está em se poder afirmar que a herança ocidental a qual temos nos referido como um legado que deve ser valorizado e defendido pode ser compreendida não apenas como um legado judaico-cristão, mas, em certo sentido, como um legado greco-judaico-árabe-cristão.

Andrea di Bonaiuto, “Triunfo de Tomas de Aquino”, na Basílica Santa Maria Novella, em Florença.

O século XIII foi particularmente significativo para a filosofia e a teologia ocidentais devido, justamente, à difusão do pensamento aristotélico, via filosofia árabe. Lembremos que a compatibilização inicial entre a cosmovisão grega e a revelação cristã tinha sido feita principalmente via Platão e neoplatonismo, sob influência maior de Santo Agostinho e que durante quase toda a Idade Média as principais obras de Aristóteles como a Física e a Metafísica permaneceram desconhecidas. Ora, sabe-se que o idealismo platônico é muito mais confortavelmente adaptado à visão de mundo cristã do que o racionalismo sistemático de Aristóteles. Tomás de Aquino foi o grande responsável por entrecruzar nas suas próprias reflexões as contribuições árabes com a filosofia aristotélica e compatibilizar esse conjunto com o cristianismo, de modo que, se considerarmos a investida platônica e neoplatônica de Santo Agostinho e a investida aristotélica de São Tomás temos, no interior da teologia cristã, as mais radicais e profundas perquirições do espírito humano, seja na dimensão místico-teológica, seja na dimensão lógico-teorética.

Uma vez que essa investigação filosófica mais realista e menos idealista ganha espaço nas Universidades europeias medievais, lança-se as bases para a modernidade que já se insinua. A partir daí, enquanto o Ocidente sintetiza o legado platônico-aristotélico e avança rumo às novas conquistas da modernidade na filosofia, na política e na cultura, o mundo muçulmano – que mal conhecera Platão – rende-se ao misticismo neoplatônico de Avicena, podando os possíveis desdobramentos da filosofia racional e intelectualista grega, mergulhando então na medievalidade da qual o Ocidente ensaiava sair.

Catarina Rochamonte é doutora em filosofia pela UFSCAR professora de Filosofia na Universidade Estadual do Ceará. https://catarinarochamonte.com.br

[1]NEDONCELLE, Maurice. Existe uma filosofia cristã? São Paulo: Flamboyant, 1958

[2]“Esse logos propaga sua verdade em todos os séculos e em todas as raças, e informou pensadores que no seu tempo eram considerados ateus: tal Heráclito ou Sócrates entre os gregos. O logos em uma palavra, é a razão de que participa a espécie humana e aqueles que vivem segundo essa razão são cristãos, sem que eles ou nós o saibamos. Essa generosa apologética marca a entrada consciente e sistemática do platonismo na especulação dos padres” (NEDONCELLE, Maurice. Existe uma filosofia cristã? São Paulo: Flamboyant, 1958)

[3]JAEGER, W. Paideia grega e cristianismo primitivo. p.138

[4]HIRSI ALI, Ayaan. Herege. São Paulo: Companhia das letras, 2015 p.66