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Um podcast para o Supremo

Foto: Dida Sampaio/Acervo Estado.

por Gabriel Heller

Em uma reportagem publicada pelo New York Times em 2013 consta, em tom jocoso e realista, que os juízes da Suprema Corte dos EUA, a menos que tenham um livro novo para vender, raramente dão entrevistas. Embora todo ano o Ministro Gilmar Mendes lance nova edição de seu Curso de Direito Constitucional, não parece ser essa a motivação para que ele tenha se tornado, nos últimos anos, o “Comentador-Geral da República”.

Jurista de formação sólida, o Ministro jamais precisou da imprensa para galgar alguns dos postos mais desejados do mundo jurídico: membro concursado do Ministério Público Federal, professor da Universidade de Brasília, Advogado-Geral da União e Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Contudo, já há alguns anos, Gilmar Mendes parece fazer questão de não ser lembrado por seus méritos. Em 2009, em uma sessão plenária do Supremo, o pouco contido e muito sincero Ministro Joaquim Barbosa dirigiu-se nesses termos ao colega: “Vossa Excelência está destruindo a Justiça desse País. (…). Vossa Excelência não está na rua, não; Vossa Excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro”. Tratava-se apenas do começo da superexposição a que o mais influente juiz do Supremo submeteria não apenas os membros do Poder Judiciário, mas também os de outros Poderes e do Ministério Público.

Os problemas dessa superexposição, na mídia e em palestras, vão da ordem legal à ordem moral. O Ministro já alegou ter sido grampeado sem que qualquer pessoa tenha tido acesso aos supostos áudios, insurgiu-se contra a “cleptocracia” do PT, defendeu investigações e voltou atrás, acusou membros do Ministério Público de praticar crimes e sugeriu anular processos inteiros. Isso sem falar nos telefonemas e almoços pouco transparentes com políticos cujo destino passa diretamente por suas mãos, sendo inclusive chamado a intervir no voto de parlamentares, como demonstrou a conversa com Aécio Neves gravada com autorização judicial.

Pior do que se manifestar sobre casos julgados por colegas ou sobre ações que virá a julgar, violando deveres básicos de qualquer juiz, Gilmar Mendes – voluntariamente ou não – faz de suas manifestações fora das sessões de julgamento um instrumento de pressão sobre os membros de outros órgãos e mesmo sobre os demais Ministros do Supremo. Sua posição intimida, e a falta de contraponto no mesmo nível apenas a reforça.

Seja por corporativismo, seja por receio do contra-ataque, não se vê – ou não se via –, no STF, qualquer tentativa de freio ao trator verboso em que se transformou o jurista. Por isso, as atuais manifestações do Ministro Luís Roberto Barroso, em plenário e em entrevistas, contrapondo-se às heterodoxas opiniões expostas pelo colega, ganham importância e merecem aplausos. Na acalorada discussão a respeito da homologação da delação de Joesley Batista e companhia, Barroso deixou claro: “Todo mundo sabe o caminho que isso vai tomar. Já estou me posicionando: sou contra. Todo mundo sabe o que se quer fazer aqui lá na frente. Eu não quero que se faça lá na frente. Já estou dizendo agora”.Totalmente válidas quando expressas no processo ou nas sessões, as manifestações de Barroso colocam-se, neste momento, como objeção não só elogiável, mas necessária em face da conduta do colega.

Deve-se notar que o furor acusatório do Ministro Gilmar tem gerado seus frutos fora do ambiente do Supremo: integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato, por exemplo, que também só deveriam se manifestar acerca de alguns temas formalmente, nos autos, passaram a fazer pronunciamentos de cunho eminentemente político. Deltan Dallagnol e seus colegas entenderam que a “batalha” não é mais travada exclusivamente nos tribunais, o que não é de chocar, se até na Suprema Corte abundam as declarações políticas sobre casos sub judice.

Não se pode esquecer que, por ocuparem a cúpula de um dos três Poderes, os Ministros do STF precisam, em determinadas circunstâncias, responder à sociedade. É do interesse dos cidadãos saber o que pensam aqueles que têm a palavra final em muitas matérias que os afetam. Porém, essa função de accountability, de dar informações e prestar contas, deve ser exercida nos limites da lei e sem prejudicar a isenção do juiz.

Se os demais juízes do STF não querem ou não conseguem chamar o colega à razão e fazer com que aja de maneira institucionalmente exemplar, talvez devamos pensar em uma alternativa em que os onze manifestem-se sobre tudo e sobre todos. Na medida em que o Ministro pode ignorar a lei e pronunciar-se como bem entenda acerca de qualquer assunto, ainda que o venha a julgar, primemos de uma vez pela transparência máxima: façamos um podcast para o Supremo.

A ideia é simples: reunidos algumas vezes por semana, os onze togados falariam, sem freios e sem impedimentos, em igualdade de meios e condições, sobre temas sugeridos pelos ouvintes. Todos teriam o mesmo tempo para se expressar. Valeriam todos os assuntos, ainda que estivessem na pauta de julgamento do dia seguinte. E, obviamente, o que fosse dito no podcast não vincularia o Ministro em julgamentos futuros.Mas deixemos de devaneios. Sarcasmo à parte, é hora de os Ministros do Supremo, não individualmente, mas como colegiado, passarem a proteger a instituição dos excessos do todo-poderoso companheiro de toga. O STF não é um arquipélago composto por onze ilhas: é um pilar de sustentação da República. A confiança “das ruas” na Suprema Corte não se baseia no número de condenações da Lava Jato, mas na certeza – ainda não firmada – de que suas decisões são justas e imparciais.

Gabriel Heller

Gabriel Heller é advogado e Mestre em Direito.