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por Déborah de Paula Souza 

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Para manter a casa, os pais nunca estão em casa. Eles passam o dia e parte da noite trabalhando. Para manter a família, machucam a família com sua ausência. O pai vende o carro velho e contrai uma dívida para comprar a própria van, com o objetivo de fazer entregas em tempo recorde. A mãe é cuidadora de idosos em domicílio. Esse casal de trabalhadores tem dois filhos, a caçula é pré-adolescente e seu irmão mais velho gosta de fazer grafites pela cidade. Está montado o ambiente que será afetado pelas condições de trabalho dos adultos. A cidade é Newcastle, na Inglaterra, mas poderia ser qualquer metrópole. O cansaço, o senso de absurdo geral, as filas no trânsito e no hospital estão globalizados.

Existe carinho e cuidado nessa família emblemática (que representa tantas outras), porém tudo ou quase tudo vai sendo invadido e erodido pelo acúmulo de trabalho. Os pais são preocupados e provedores, mas a tensão é evidente. Quem coloca o desespero em ato é o filho adolescente. Ele tem problemas com o pai, a escola e a polícia. Sua atitude demanda o comparecimento dos pais na escola e na delegacia. Exige-se o impossível: a presença. Como estar presente quando as tarefas devoram todos os minutos da vida? O trabalho está no lugar da morte. Esse lugar é sustentado pelo medo de perder a van das entregas, a casa, o ganha-pão. Ao longo do filme, descobrimos que o casal perdeu a possibilidade de comprar a casa própria na crise de 2008. Os dois estão exaustos, não conseguem mais sequer fazer uma refeição com os filhos, a quem eles desejam oferecer “uma vida melhor”. O que não pode ser dito na mesa de jantar explode nas acusações do filho adolescente, a filha menor faz xixi na cama. Já o pai faz xixi numa garrafa de plástico dentro da van, não pode ir ao banheiro porque carrega uma maquininha que controla o tempo de entrega das mercadorias. É o mercado “livre”, ilustrado pela fala de seu chefe: “Você não trabalha para a gente, você trabalha com a gente. A escolha é sua”. A “escolha” consiste em trabalhar 14 horas por dia, seis dias por semana, sem contrato e sem direito. O dinheiro só dá para pagar a dívida do carro necessário ao trabalho. O discurso para justificar a “liberdade” e a velocidade é o jargão neoliberal, as palavras não dizem mais nada. O cativeiro é chamado de autonomia.

O trabalho de Ricky, o pai protagonista (interpretado por Kris Hitchen), parece simples, basta entregar as encomendas de carro. Mas imagine estacionar uma van numa grande cidade e usar o interfone de um prédio para localizar o destinatário, ou atravessar os cachorros nas casas do subúrbio. Quem contabiliza o tempo de pessoas, bichos, da procura pela vaga no estacionamento ou o valor da multa de trânsito? O trabalho é medido por um único critério: a velocidade da entrega. Ken Loach, o diretor, tem mais de 80 anos e sabe filmar a angústia gerada pelo capitalismo selvagem, como comprova o seu filme anterior, Eu, Daniel Blake (2016), em que o protagonista tenta se aposentar e é enredado numa burocracia enlouquecedora. Loach trabalha sempre em parceria com Paul Laverty, que escreveu o roteiro desses dois filmes focados no eixo trabalho/morte. A dupla dá visibilidade ao fato de que a desumanização não está restrita ao ambiente profissional — ela corrói tudo. Eu, Daniel Blake ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2016 e Você não estava aqui (cujo título original é Sorry We Missed You) venceu o Prêmio Bafta de Cinema 2019, como melhor filme britânico. Segundo os críticos, a dupla de artistas que toma abertamente o partido dos trabalhadores é odiada pela direita local.

As cenas de humanidade remetem a um mundo em vias de desaparecimento: pai e filha comendo um sanduíche e desfrutando a paisagem; a família inteira cantando na van, numa situação inesperada; o primeiro amor adolescente. A única cena de “descanso” da mãe é quando ela permite que uma idosa penteie seus cabelos. A participação dos velhos toca profundamente. Uma alusão à demência, à finitude, à necessidade que temos uns dos outros. Tanto os velhos quanto os jovens encharcam a cena. O xixi vaza na cama da criança, na fralda dos velhos, no dia a dia apertado. Na fase inicial ou final da vida, as pessoas não estão na mesma velocidade dos trabalhadores. Elas atrapalham o ritmo insano, dando a ver o que não é visível: a metralhadora da velocidade matando a vida e produzindo um tipo de subjetividade que esfacela os laços sociais e o amor.

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(Reprodução)
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Profecias de Cinema

A questão da velocidade me fez lembrar de outro filme, de 2014, chamado Lucy, uma ficção científica dirigida pelo francês Luc Besson, que abusa dos clichês de Hollywood (máfias chinesas, assassinatos espetaculares, desastres automobilísticos). Encontrei na Netflix porque queria ver Scarlett Johansson no papel de heroína doidona. Ela é Lucy, garota comum que se transforma numa supermulher depois de uma overdose de droga desconhecida. Sabe que vai morrer e procura um cientista especializado na capacidade cerebral e cognitiva. A nova inteligência de Lucy, sob os efeitos da droga, ultrapassou todos os limites. Para compartilhar o que sabe, ela se conecta celularmente à rede de computadores e mostra que a humanidade é um fenômeno contido no tempo. Qualquer alteração temporal modifica a equação da vida humana. Para ilustrar isso, utilizam-se cenas de automóveis em altíssima velocidade: primeiro vemos o carro, depois riscos no espaço, depois luz, depois nada. Somos nós os carros de passagem pelo planeta. Nos delírios da personagem, a lentidão permite a contemplação búdica e a compaixão pelos seres. Na aceleração impera o fascínio do poder, a manipulação dos destinos e, por fim, a dissolução da matéria. Em resumo: a configuração humana não suporta a aceleração ilimitada. Não é possível estar em vários lugares ao mesmo tempo — nem mesmo virtualmente. E essa é a ilusão (ou a desilusão) contemporânea.

No filme de Ken Loach, vemos a mãe ao celular, tentando controlar a casa e apoiar os filhos à distância. Ela parece onipresente, mas não está em lugar algum — essa é a experiência de estilhaço pela qual estamos todos passando. Na verdade, o filme parece um documentário. Na mesma semana em que o vi, li a notícia de que as mães brasileiras estão deixando na creche seus bebês de um mês de idade. Elas precisam trabalhar em seus jobs e serviços temporários. Sem contrato, perderam o direito à licença maternidade, são “autônomas”. Li também um post de uma mulher que, numa noite de chuva, usou o aplicativo para pedir um lanche para ela e os filhos pequenos. O entregador chegou de bicicleta sob o temporal. Era um senhor que se parecia com o pai dela. A moça perguntou se ele queria entrar, tomar uma água, aguardar a chuva diminuir. Ele recusou, pediu apenas que ela fizesse uma boa avaliação dele no aplicativo, a empresa demorou a aceitá-lo porque ele era mais velho.

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(Reprodução)
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Fábulas da Pandemia

Vi o filme antes da pandemia. No momento de finalizar este texto, o coronavírus já deixou seu rastro de morte no mundo e explodiu aqui. Estou fechada no meu apartamento, atendo meus pacientes à distância, temo pelo crescente número de mortos. Segundo o noticiário, os doentes, os idosos e os pobres são mais vulneráveis ao vírus, mas ele pode infectar qualquer um.

Com tanta gente isolada em casa, os entregadores ganharam de vez um papel de destaque no roteiro, incluindo-se aí os motoristas de caminhões responsáveis pelo abastecimento e os pequenos entregadores que levam comida e medicamento a quem precisa. Ninguém sabe como vai terminar essa série de terror, mas todos conhecem o contexto atroz em que a pandemia se alastrou.

Pretendo sobreviver para contar aos meus futuros netos uma história insólita: nos idos de 2020, meses depois em que o dia virou noite na cidade de São Paulo, o mundo corria tanto e estava tão poluído, que quase morreu sem fôlego e asfixiado. Era um mundo irrespirável. Foi nessa época que surgiu um vírus que atacava justamente os pulmões dos humanos. Muitos adoeceram, outros morreram. Para aplacar o medo dos pequenos, vou me deitar com eles no chão da sala e desenharemos juntos o pulmão da terra — uma floresta que foi durante anos maltratada. Meus netos, por sua vez, vão contar aos amigos que a avó deles era tão velha, mas tão velha, que conhecia as fábulas dos xamãs que moravam nessa floresta e que seguravam o céu[*] para que o mundo não desabasse e as crianças pudessem nascer. Esses índios passavam o dia cantando, dançando e inventando histórias para adiar o fim do mundo.[*] A avó era uma super-heroína contida no tempo, tentando viajar para o futuro e garantir que os netos estarão lá.

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Nota:

[*] Referência aos livros A queda do céu – palavras de um xamã yanomami (de David Kopenawa e Bruce Albert) e Ideias para adiar o Fim do Mundo (de Ailton Krenak), ambos da Companhia das Letras.

Este texto foi originalmente publicado no Boletim do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

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Déborah de Paula Souza

Déborah de Paula Souza é jornalista, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.