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Isaiah Berlin, tolerância e pluralismo: “Uma Mensagem para o Século XXI”

Estado da Arte publica hoje, em parceria com a editora Âyiné, o discurso de Isaiah Berlin pronunciado na Universidade de Toronto em novembro de 1994. Trata-se de uma mensagem de grande apelo a nossos tempos de polarização. O livro publicado no Brasil conta ainda com o ensaio “A procura do ideal”. Confira no site da editora aqui.

Em 25 de novembro de 1994, Isaiah Berlin aceitou o grau honorário de doutor em leis da Universidade de Toronto. Ele preparou o seguinte “credo breve” (como ele mesmo o chamou em uma carta a um amigo canadense) [1] para a cerimônia, na qual o texto foi lido em seu nome.

O discurso

“Foi a melhor das épocas, foi a pior das épocas.” Com essas palavras, Dickens inicia seu famoso romance Um conto de duas cidades. Mas, infelizmente, esse não é o caso de nosso terrível século. Os homens vêm destruindo uns aos outros através dos milênios, mas os feitos de Átila, o Huno, Genghis Khan, Napoleão (este, que nos apresentou ao extermínio em massa nos tempos de guerra) ou até mesmo o massacre armênio murcham em insignificância diante da Revolução Russa e suas ramificações: a opressão, a tortura, assassinatos que podem ser lançados na conta de Lênin, Stálin, Mao, Pol Pot e a sistemática falsificação de informação que impedia que todas essas atrocidades se tornassem de conhecimento público – isso sim foi sem paralelo na história. Esses não foram desastres naturais, mas crimes perpetrados por homens que poderiam ter sido evitados, independente do que pensam os mais empedernidos deterministas históricos.

Falo do meu ponto de vista, e sou um homem bastante velho, vivi quase o século todo. Minha vida foi serena e segura e me sinto quase envergonhado por isso diante do que aconteceu com tantos outros seres humanos. Não sou um historiador, por isso não posso falar com autoridade sobre as causas desses acontecimentos horríveis. Mas talvez eu possa tentar.

Eles não foram, em minha opinião, causados pelos sentimentos negativos mais mundanos dos seres humanos descritos por Spinoza, quais sejam: medo, cobiça, ódio tribal, inveja, amor pelo poder; apesar de obviamente cada um deles ter contribuído à sua maneira. Na verdade, foram consequência de ideias, ou melhor, de uma ideia em particular. É de certa forma paradoxal que Karl Marx, que sempre menosprezou a importância das ideias em comparação com as sempre indiferentes forças econômicas e sociais da história, tenha, por meio de seus escritos, transformado o século XX de forma tão maciça, tanto na direção que ele almejava quanto, por reação, em seu contrário. O poeta alemão Heine, em uma de suas famosas obras, nos impele a não subestimar o filósofo silencioso abstraído em seus estudos; se Kant não houvesse desossado a teologia, argumenta ele, Robespierre provavelmente não teria decapitado o rei da França.

Ele previu que os discípulos armados dos filósofos alemães – Fichte, Schelling e outros paladinos do nacionalismo alemão – destroçariam eventualmente os grandes monumentos da Europa Ocidental com tal fúria destruidora que fariam a Revolução Francesa se rebaixar a uma categoria de lendas infantis. Por mais que soe como uma injustiça para com os metafísicos teutônicos, a verdade é que o fulcro das ideias de Heine apresenta uma solidez desconcertante: de maneira distorcida, a ideologia nazista foi produto do anti-iluminismo alemão. Há homens que matam e ferem com uma consciência assaz tranquila sob a blindagem de palavras e escritos daqueles que possuem a fé inabalável de que a perfeição pode ser alcançada.

Posso explicar: se você estiver convencido de que existe uma solução para todos os problemas humanos e de que alguém possui uma visão de uma sociedade que pode se concretizar apenas seguindo certos passos por vez, você e seus seguidores necessariamente garantirão que nada no caminho atrapalhe o trajeto em direção ao suposto paraíso na terra. Obviamente, só os estúpidos ou os de má-fé se colocariam contra tal empreitada, e as palavras da persuasão lhes seriam oferecidas.

Caso esses alienados não fossem tocados pela “verdade”, leis sob medida seriam criadas para cerceá-los; caso o império das leis se demonstrasse abstrato em demasia, a força da violência viria em seu respaldo; em última instância, lançar-se-ia mão do terror e da carnificina. Lênin passou a acreditar nisso depois de ler O capital e pregava assiduamente que uma sociedade mais justa, pacífica, feliz, livre e virtuosa poderia ser erigida graças a suas instruções, de forma que os fins justificava todo e qualquer meio que precisasse ser usado.

O que sustenta essa convicção é a ideia de que existe uma única resposta para as aflições humanas, tanto no plano social quanto no individual, e que cabe a nós descobri-la. Uma vez vinda à luz, cabe a nós implementá-la, e seus descobridores são os líderes cujas palavras possuem força de lei. A ideia de que para cada pergunta genuinamente de ordem filosófica há apenas uma resposta é uma noção antiga na filosofia. Os grandes filósofos atenienses, judeus e cristãos, os pensadores da Renascença e da Paris de Luiz XIV, os reformadores radicais franceses do século XVIII, os revolucionários do século XIX – não importa quão diversa a resposta se apresentasse em cada período ou quais fossem os meios para se chegar a ela (lembrando sempre que guerras foram travadas em função disso), todos estavam convictos de que detinham a resposta e de que nada além dos vícios e da ignorância poderia interromper sua realização.

Essa é a ideia à qual eu me referia, e o que pretendo lhes dizer é que ela é falsa. Não somente devido ao fato de que as diversas escolas defendem soluções distintas entre si e que nenhuma delas pode ser provada sob as lentes racionais, mas também por um motivo ainda mais profundo. Os valores centrais pelos quais os homens viveram ao longo dos tempos, independente da época e da cultura local, por mais que não fossem universais, tampouco eram harmoniosos entre si. Logicamente que alguns valores são congruentes entre si; no entanto, outros não. Os homens sempre almejaram liberdade, segurança, equanimidade, felicidade, justiça, conhecimento e assim por diante. Mas a liberdade completa é incompatível com a equanimidade total – se os homens fossem totalmente livres, os lobos não teriam amarras que evitassem que devorassem as ovelhas. Uma perfeita equanimidade significa que algumas liberdades humanas devem ser restringidas no intuito de frear os mais habilidosos e mais inteligentes de dominarem os mais frágeis, caso a livre competição fosse posta em prática. A segurança, e mesmo a liberdade, não pode ser preservada se existir para ser subvertida. A verdade é que não é todo mundo que busca segurança e liberdade; do contrário, algumas pessoas não se arriscariam na busca por glórias nas guerras ou mesmo nos esportes radicais.

A justiça sempre foi um ideal humano, mas ela não é inteiramente compatível com a piedade. Imaginação criativa e espontaneidade, uma graça por si mesmas, não podem ser conciliadas plenamente com a necessidade de planejamento, organização e cálculos cuidadosos e meticulosos. O conhecimento, ou seja, a procura pela verdade, o mais nobre dos objetivos, não pode ser alinhado com a felicidade ou com a liberdade que os homens tanto desejam, uma vez que, quando eu souber que sofro de uma doença incurável, tal consciência não me deixará mais radiante ou mais livre. Deverei sempre escolher: entre paz e diversão, conhecimento ou a santa ignorância. E por aí vai.

Sendo assim, o que se pode fazer para segurar os campeões, algumas vezes um tanto quanto fanáticos, de alguns desses valores, uma vez que cada um tende a sobrepujar o outro, assim como os grandes tiranos do século XX o fizeram com a vida, a liberdade e os direitos humanos de milhões porque seus olhos estavam voltados para um suposto futuro dourado e definitivo?

Infelizmente, temo não ter na manga uma resposta retumbante para essa questão: somente creio que, se realmente estamos em busca desses valores mais etéreos da condição humana, necessariamente somos obrigados a fazer concessões, forjar compromissos, lançar mão de custos de oportunidades e nos organizarmos para que o pior não nos assombre. É muita liberdade para muita equanimidade, assim como muito individualismo para tanta segurança, sem mencionar a crescente necessidade de justiça para preencher todo o discurso da compaixão. Meu ponto básico é que algumas virtudes batem de frente com outras: os fins perseguidos pelos serem humanos são todos gerados pela nossa natureza em comum, mas suas buscas devem ser, de alguma maneira, controladas – a liberdade e a procura pela felicidade, repito, podem não ser totalmente compatíveis uma com a outra, nem a liberdade, a equanimidade e a fraternidade.

É por isso que nos cabe pesar, negociar, nos comprometermos e prevenir o esfacelamento de uma delas pelas mãos de suas rivais. Eu sei bem que essa não é uma bandeira muito atraente, que faria jovens ensandecidos e delirantes marcharem enrijecidos pelos bulevares – parece muito polido, muito razoável, até mesmo muito elitista, de certa sutileza que não atiça o caldeirão de emoções humanas. Mas vocês precisam crer em minhas palavras: ninguém consegue tudo aquilo que deseja – não somente na prática, mas também em teoria. A negação desse fato, a corrida por um único e abrangente ideal que aplacará os males da humanidade, somente nos levará à coerção bruta. Posteriormente, a coerção descambará para a destruição, sangue – ovos são quebrados, porém o vislumbre do omelete não chega, e o que fica é uma infinidade de ovos, vidas humanas, prontos para a quebradeira. No final, os mais ardorosos idealistas acabam esquecendo o omelete, mas seguem quebrando ovos.

Fico contente de atestar, ao fim de minha vida, que uma percepção dessa realidade esteja ficando mais clara. Racionalidade e tolerância, sempre raras na história humana, não são desprezadas. A democracia liberal, apesar da nova corja de fanáticos modernos e do nacionalismo fundamentalista, está se espalhando. As grandes tiranias ou já estão se despedaçando ou caminham firmemente nessa direção – até mesmo a China atual não ficará de fora. Estou contente porque você, a quem me dirijo neste momento, verá o século XXI, uma época que, tenho certeza, será muito melhor para a humanidade do que foi a minha. Eu o felicito por sua sorte grande; sinto-me mal por mim mesmo, que não terei a chance de testemunhar esse futuro brilhante – futuro esse que estou seguro de que virá. Depois de todo o pessimismo que preguei ao longo dos anos, fico contente por finalizar com uma nota de otimismo. Existem boas razões que a justificam.

[1]Para John Roberts, 5 dezembro 1994.

TRADUÇÃO: André Bezamat

REVISÃO:  Sandra Martha Dolinsky e Mariana Delfini