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Marco Lucchesi e Hugo Langone: dois autores em colóquio

O Estado da Arte traz hoje não exatamente uma entrevista, mas uma conversa entre dois autores: Hugo Langone, nosso colaborador habitual, e Marco Lucchesi, jovem imortal da Academia Brasileira de Letras.

Hugo é poeta, ensaísta, editor e tradutor; é autor de Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito, A descida do Monte Tabor (no prelo) e Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, as Confissões e o manejo da literatura pagã. Também é doutor em Teoria Literária pela UFRJ.

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Hugo Langone (Reprodução)

Quanto a Marco, conhecemos todos sua erudição. Além de imortal da ABL, é professor titular de Literatura Comparada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), formou-se em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e recebeu os títulos de Mestre e Doutor em Ciência da Literatura, pela UFRJ, e de Pós-Doutor em Filosofia da Renascença pela Universidade de Colônia, na Alemanha. Em 2016, recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Tibiscus, de Timisoara, e, em 2020, o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Aurel Vlaicu de Arad.

Marco Lucchesi (Divulgação/Acervo Estado)

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O diálogo que publicamos aqui hoje é algo que nos é muito especial; afinal, os diálogos fazem parte da trajetória de Marco Lucchesi: interlocutor de Antonio Carlos Villaça, Nise da Silveira e Carlos Drummond de Andrade, de Nagib Mahfuz e Umberto Eco, de Mario Luzi e Paolo Dall’Oglio, ele é alguém cuja vida e obra foram transformadas por essas conversas e sempre se revelaram à altura delas. O que dizer, afinal, de alguém que, não satisfeito em conhecer mais de vinte idiomas, criou sua própria língua, o laputar?

Felizmente para nós, o diálogo entre Hugo Langone e Marco Lucchesi está em português — o português, língua imortalizada por figuras como Lucchesi e vitalizada por poetas como Hugo.

Fiquemos então com os dois — dois autores em colóquio.

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HL: Uma frase de que sempre me recordo é aquela de Sócrates que Quintás por mais de uma vez reproduz em seus ensaios: “A beleza é difícil.” No entanto, ela faz sentir sua presença e seu chamado, e todos respondemos a ela em maior ou menor grau, se tivermos os olhares e o coração limpos. Tendo a concordar, e cada vez mais, com que a beleza é uma obrigação moral, uma vez que o homem, magnânimo e pequeno ao mesmo tempo, tem abertura natural para ela. O que explicaria que Ungaretti, sob as tensões de uma trincheira, conseguisse olhar para o firmamento e imaginar seus gritos despencando da “campana do céu”? Ou que um muro de chapisco inspirasse outro italiano a tratar dos campos de limão e, nisso, desvendar o coração de tantos homens? Lembro, Marco, de sentir algo assim ao abrir seu Bizâncio – uma abertura, de que compartilho, a certo peso que não conseguimos ver, mas que por vezes um verso simples pode descortinar e que reconhecemos, mas não explicamos de todo – ainda que se fale de forma, de ordem, de expressividade, de harmonia, o que seja. A beleza é difícil.

ML: Há uma espécie de elaboração filosófica de um núcleo mais ou menos ponderado que conjuga o pensamento complexo, a mecânica quântica e as geometrias não euclidianas para tratar do belo. Sim, é difícil e se tornou mais árduo pronunciá-lo, a partir da querela entre simples e complexo. A estética antiga, de fundo neoplatônico, definia o belo como somatório da integridade, proporção e claridade. Basta uma excursão ao complexo de Mandelbrot para compreender as bases da nova estética, em que pese a simetria sob a desordem aparente. Ou o contrário. Não tanto a fruição, mas a quebra de um paradigma apontado por Umberto Eco na sua história – mista – entre o belo e seu contrário. O núcleo duro demora na raiz das formas complexas. Sinto o fascínio da poética das matemáticas, tanto no formalismo quanto no intuicionismo, de Frege a Brouwer. E interrogo as potências do belo, no coração do “monstro”. Lembro de Hardy: a última prova da matemática é a beleza. Mas ele não abandona o espólio da simplicidade. A relação íntima da poesia com a matemática é muito antiga. A nominata seria longa. Cito apenas Dante e Novalis, Ion Barbu e Joaquim Cardozo, Leonardo Sinisgalli e Velimir Khliébnikov.  As publicações nessa área são fascinantes. Refiro-me às matemáticas avançadas e à mecânica quântica. Para Yuri Manin, trata-se de operações metafóricas. Quem o precedeu na afirmação, em outro campo, foi Simone Weil. Seja como for, o ideal grego permanece, como fantasma luminoso, na conjunção da ética e da estética. Como um projeto de vida, iniciado por Sócrates. Mas isso não salva a literatura. Nem é bastante ou suficiente. Apenas um imperativo categórico.

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Simone Weil

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HL: Há, porém, um mal-entendido que pode surgir dessa abertura e dessa sensibilidade. E nesse mal-entendido – veja se está de acordo: reconheço que, hoje, muitos não haverão de estar – resvalaram muitos homens e mulheres brilhantes. Parece-me verdadeiramente um equívoco, este de ver na experiência estética uma espécie de consolo. Pude dizê-lo noutras ocasiões, algumas ainda não publicadas. Caso nos sirvam a literatura e a arte apenas como consolo, se nisso se resumem, que diferença há entre isso e qualquer outra reação ao desespero? A beleza será unicamente consolo se as coisas não tiverem sentido, se tudo for tão desesperador que consolo é a única coisa que resta. Entre ela e uma vida desordenada – que diferença haveria? É preciso que a experiência da beleza artística seja algo mais, e sentimos que é. Ela é mais do que um “estetismo como refúgio”.

ML: Trata-se de fundamentar a energia para apressar o futuro, para inventá-lo, para emprestar-lhe um corpo, contra os espectros da distopia. E poderíamos citar livros que operam com a esperança ativa. Mas o que você diz é outra coisa. E assim, mais uma vez, recorro aos entes matemáticos. Tomo dois extremos: a elegância da garrafa de Klein e dos sólidos platônicos. O belo é constitutivo, produto da tensão interna, processo de camadas ativas, semoventes.  Está muito bem: is a joy forever.  Ninguém pode negar essa tectônica emotiva, esse mistério que não se resume ao mero domínio técnico, segundo disse Leonardo no Tratado sobre a pintura. Algo escapa. Não se pode fazer matemática sem psicologia. Estou com Hadamard. Há muitas coisas entre o céu e a terra, do que imagina o Horácio de Hamlet: uma solução de continuidade entre os dialetos do belo e a dicção das geometrias. Ouso retomar o conceito de claridade medieval, deslocando-o para outra comarca. Aquela imprecisão de Leopardi e Leonardo. Importam as poéticas transversais, anteriores à conformação do poema propriamente dita. O belo como salto no abismo. Suspenso numa condição: Ab-grund. Consolo? Paradigmas que mal se reconhecem, em progresso, em desafio e um certo e benfazejo mal-estar.

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John Keats

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HL: Tudo isso me leva a pensar em algo mais. É fácil também que nos desviemos e esqueçamos do impacto coletivo que nossas páginas, nossos versos, os sons e as cores, podem exercer. Eis uma área um tanto nebulosa. Já se disse que o grande trunfo social dos versos estaria em conservar alguma vitalidade da linguagem. Isso de fato acontece, naturalmente, mas gosto de pensar que se dá precisamente porque é alto o que ela precisa alcançar – e alto, aqui, nada diz respeito a artificialidade. Nas mãos de um hábil, há expressividade e presença no cumprimento mais rotineiro, não é? Por outro lado, se se tratasse somente da vitalidade da língua… Veja: ditadores e tiranos proscreveram a literatura, a arte, e decerto não graças ao vigor linguístico que elas conservavam. Havia nelas algo mais. Você bem sabe, Marco: não é preciso ir longe no tempo e no espaço. Por outro lado, também não me parece que os tiranos se ocupassem de proscrever apenas livros e autores descaradamente panfletários, donos de uma obra que não sobreviveria ao tempo e que só diria algo significativo a contemporâneos. A boa literatura sobrevive e, por isso, é sinal de resistência à politização de tudo, de todos os âmbitos do homem, como esta que vivemos hoje. Por outro lado, nutre-se dela e a ela retorna sob alguma influência, digamos, “escorregadia”…

ML: Concordo, meu amigo. Gosto de dançar nas respostas. Czes?aw Mi?osz decidiu-se por uma poética da fluência. Mahmud Daruish realizou leituras em estádios de futebol.  A poesia sufi atinge alta popularidade, do Irã ao Norte da Índia, com uma queda forçada pela devastação dos wahabitas no Paquistão e no Afeganistão. Seguimos outra via, deste lado, com Mallarmé e Baudelaire, o simbolismo, as correntes herméticas e a proliferação de formas subjetivas. Embora a herança do cristianismo tenha sido determinante. Diria a tradição de fundo platônico, desde a segunda navegação proposta nos diálogos e retomada pela escola de Tübingen-Milão revendo os textos de Platão. Uma aventura fascinante. Extremada de forma genial desde Plotino. Mas quero referir-me ao texto complexo, neste caso, como no Apocalipse, que demanda um círculo hermenêutico drástico. Assim também o trobar clus, a poesia escura, e o Paraíso de Dante. Lembro de uma longa conversa com o poeta Adonis – quando havia mundo, rosto e distância – acerca da leitura restrita da poesia no Ocidente, compensada pela qualidade, pelas virtudes do exímio leitor de poesia. 

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HL: Podemos, então, ir “para o outro lado”, pois somos também – quiçá sobretudo – leitores. Ainda que os livros continuem a ser escritos, que os autores respondam ao convite da escrita, é preciso questionar se há ouvidos prontos e como poderiam sê-lo. Para o escritor que tem a escrita por vocação, é verdade que no fundo isso pouco importa para a execução do ofício; ocorre, porém, que se trata de um ofício que comunica, e não se pode deixar de pensar que ficaria um gosto amargo, que não chegaria o ciclo ao fim, caso não chegasse… ao fim. Mas que ouvidos são esses em meio às enxurradas de informação, que em tudo perscrutam indícios de uma polarização ideológica? Os autores… Devemos esperar ouvidos prontos ou, antes, prepará-los? Em que leitor perdurarão os versos, as frases, que a literatura produz hoje? Os autores não falarão senão para os pares? Por outro lado, como quis escrever em artigo recente, o ato de ler literatura é um antídoto perfeito para os tempos que correm: exige individualidade e silêncio em tempos de arroubos coletivos e ruído; comunica um impacto inequívoco em dias em que tudo se discute e questiona.

ML: Gosto de responder como quando visito o cárcere. Não há mais que um lado. E lá me refiro à Humanidade, a mesma, entre quem está livre e cumpre a pena. Mas diria também que só existe a condição de leitor, o resto não passando de mera paisagem ilusória. Pensemos em Borges e Calvino. Por outro lado, compreendo a sua gestão específica. O ponto é mais amplo. E comecei a tratar da prisão porque é uma indispensável metonímia, entre o bem e o belo. Certa vez me deparei num presídio de segurança máxima com um ateliê de qualidade expressiva. E me receberam com música, voz e violão. Rapazes de vinte anos, chefes de bocas de fumo. Todos inteligentes. Não frequentaram a escola, por não haver República, negros e pardos, como sabemos, caro Hugo. Aprenderam música e pintura na escola do cárcere. Quantos talentos relegados. Os ouvidos a que você se refere dependem da escola. O leitor não será salvo apenas pelo autor, mas pela formação da cidadania. Sou abolicionista. Tenho falado de experiências inesquecíveis de leitura na prisão. Acredito numa razão inversamente proporcional: haverá mais escuta e leitores, quanto menor se tornar o número das prisões. Mais escola. Mais liberdade.

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(Desconhecido, c. 1628)

Hugo Langone

Hugo Langone é poeta e doutor em Teoria Literária, autor dos livros Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito (7Letras, 2015), A descida do monte Tabor (no prelo) e Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, as Confissões e o manejo da literatura pagã (Filocalia, 2017).